Sejam bem vindos, este blog tem o intuito de abordar assuntos relacionados ao universo da Psicologia Fenomenológica Existencial, aqui você encontrará informações sobre cursos, palestras, livros, textos, artigos, vídeos e tudo o que possa acrescentar ao nosso saber. Grata, Nina - Jennifer Giusti
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
sexta-feira, 6 de novembro de 2015
Gentileza é a gente deixar o outro ser de carne e osso
Por Clara Baccarin
Gentileza gera gentileza.
Pois é, mas acho que ser gentil não é ser bem educado, ser gentil é ser bem humano.
Não é gentil quem age de mal grado com um sorriso no rosto, quem demonstra curiosidade por uma história enorme narrada por um amigo bocejando por dentro, quem responde uma mensagem na madrugada só por educação. Gentileza não é só tratar as pessoas com sorrisos e ‘sins’ e evitar conflitos e evitar desacordos. E esconder verdades quando estas forem duras de dizer. Gentileza é mostrar verdades com jeitinho, é dizer não, é mostrar falta de interesse, é fazer cara de cansaço e desanimo, é pedir licença e mostrar as cartas com delicadeza, é pedir pra sair. E tratar com cuidado a delicadeza do outro. A maior gentileza que alguém pode oferecer é a transparência. É a humildade de dizer a verdade. Ser gentil é perder o profissionalismo quando preciso e deixar transparecer o corpo e a mente cansados e pedir a gentileza dos outros para te dar espaço hoje para ser de carne e osso. Gentileza é a gente deixar o outro ser de carne e osso. Gentileza é calor humano. É uma alma esquentando a outra através do olhar. Sorrisos artificiais, comentários ensaiados, frases decoradas, preocupações encenadas não aliviam nada, não são gentis. A gentileza pode estar num olhar cansado, num afastamento na falta de sentimento, numa mão que não se deu, num passo atrás, numa ausência. A gentileza pode ser uma conversa curta, uma coragem de dizer não, a coragem de tocar em assuntos delicados. Ser gentil é tocar em assuntos delicados com delicadeza, ser gentil é machucar avisando que vai doer um pouquinho, é destruir sentimentos, mas de preferencia com um tiro só, certeiro, é desligar o aparelho de palavras doces e educadas que mantém vivo o amor no coração do outro. Ser gentil é matar. É deixar a dor do outro doer em paz. E já não querer ajudar a cicatrizar com preocupações robóticas que poderiam gerar suspiros falsos de vida. É desejar o bem e não mais voltar se é isso que se deseja por dentro. Ser gentil é conversar, é falar o que se pensa, o que se passa, do começo ao fim, e acima de tudo, ser gentil é saber ouvir. Ser gentil é ceder um pouco de tempo, um pouco de ouvido, um pouco de palavras, um pouco de ânimo. Ser gentil é sinalizar. É deixar-se conhecer. Gentileza é mostrar os terrenos para que o outro possa escolher se quer pisar.
Ser gentil é um agir antes que sentimentos ruins maiores se instaurem: raiva, rancor, tristeza profunda.
Se você for gentil de carne e osso, você não vai precisar aprender quando ceder o lugar no ônibus, como agir com o funcionário novo da empresa, como sorrir para um novo amigo, como se expressar sobre a comida um tanto estranha de sua nova sogra, como opinar sobre o cabelo novo de seu amigo. Se você for gentil de carne e osso você vai saber instintivamente como não ser insensato com corações. Quem é gentil de carne e osso é gentil mesmo quando ninguém está olhando, é gentil com as plantas de casa, é gentil consigo mesmo, no próprio pensamento que aprendeu a não se autojulgar, autosabotar e autopunir tanto e sabe cuidar das próprias dores sem raiva e sabe cultivar os amores sem ansiedade.
Gentileza gera gentileza porque calor humano gera calor humano.
Sejamos gentis de carne e osso!
terça-feira, 14 de julho de 2015
Evento: Quem sou EU?
Segue folder da palestra que darei: O Ser como Presença - numa perspectiva fenomenológica existencial.
Todos estão convidados!
Todos estão convidados!
sexta-feira, 10 de julho de 2015
Sobre a “Oração da Gestalt”
“Eu sou eu, você é você.
Eu faço as minhas coisas e você faz as suas coisas.
Eu sou eu, você é você.
Não estou neste mundo para viver de acordo com as suas expectativas.
E nem você o está para viver de acordo com as minhas.
Eu sou eu, você é você.
Se por acaso nos encontrarmos, é lindo.
Se não, não há o que fazer.”
Fritz Perls, 1969
Por Alina Purvinis (CRP: 06/1828-1)
A assim chamada “Oração da Gestalt”, um pequeno poema escrito por Frederick Perls, e considerada uma síntese da sua visão sobre as relações interpessoais, tem sido, na minha opinião, muitas vezes mal interpretada.
Tenho ouvido críticas a ela, afirmando que Fritz prega um individualismo exacerbado, enfatizando o “eu” e o “tu”, e deixando de dar importância ao “nós”, á interdependência que existe entre todos os seres humanos.
EU NÃO ENTENDO A ORAÇÃO DESTA MANEIRA.
Ao contrário, considero que a posição afirmada por Perls é a de um respeito total pela individualidade, pela aceitação das diferenças individuais e pelo reconhecimento e aceitação plenos dos limites inerentes a qualquer relacionamento.
Explicitando melhor cada parte da oração:
“Eu sou eu”: o primeiro pré-requisito para qualquer relacionamento maduro e saudável é que eu saiba quem sou, que eu reconheça e aceite todas as partes que compõem minha individualidade (tanto minhas qualidades e recursos, quanto meus defeitos e limitações), e que eu assuma totalmente a responsabilidade por tudo que sinto, penso e faço.
“Você é você”: o segundo pré-requisito (que depende do primeiro) é ser capaz de ver o outro, reconhecer o outro como outro, diferente de mim. Temos a tendência de projetar nossos sentimentos, expectativas, conflitos, significados, na outra pessoa, principalmente quando não temos uma consciência clara desses aspectos. Interpretamos muitos comportamentos das outras pessoas como algo dirigido a nós, quando, na maior parte das vezes, esses comportamentos têm a ver com o referencial delas, não tem nada a ver conosco.
“Eu faço minhas coisas, você faz as suas”: costumo comparar as duas pessoas envolvidas num relacionamento com dois círculos. Se eles estão completamente separados, não existe relação. Se eles estão superpostos, isso configura uma confluência (fusão, simbiose), em que a individualidade dos dois está anulada. Se eles têm um espaço de intersecção, existe uma interdependência – cada um tem o seu espaço individual, em que desenvolve seus próprios interesses e preferências, e existe o espaço comum aos dois, em que fazem coisas juntos e compartilham experiências.
“Não estou neste mundo para viver de acordo com suas expectativas, e você não está neste mundo para viver de acordo com as minhas”: quando iniciamos um relacionamento, podemos ficar extremamente preocupados em relação ao que o outro espera de nós; algumas pessoas (especialmente as mulheres) parecem ter desenvolvido “antenas” para captar as necessidades do outro e tentam satisfazê-las, na expectativa de assim obter seu afeto e aprovação. No entanto, agir dessa maneira é uma armadilha, por várias razões: em primeiro lugar, aquela pessoa única e interessante que despertou atração simplesmente desaparece, transforma-se num “zero á esquerda”, extremamente desinteressante; em segundo lugar, a pessoa que se anula e dá demais cria expectativas de receber muito também e se frustra – temos uma idéia errônea de que seremos tratados da mesma maneira como tratamos o outro, e na verdade somos tratados pelo outro da mesma maneira que nós nos tratamos; em terceiro lugar, a pessoa nunca vai se sentir realmente amada ou valorizada, pois não está sendo ela mesma no relacionamento, está mostrando uma falsa imagem; e, finalmente, ninguém consegue sufocar suas verdadeiras necessidades e sentimentos para sempre, então esse relacionamento é uma “ bomba relógio”, aquilo que a pessoa faz para manter a harmonia, para evitar brigas, é exatamente o que vai levar á ruptura.
“E se por acaso nos encontramos, é lindo. Se não, nada há a fazer”: este final, que ás vezes é considerado pessimista, simplesmente afirma uma verdade. Ninguém pode se obrigar a querer aquilo que não quer, a ser aquilo que não é, a passar por cima dos seus limites, a ceder onde não dá para ceder. E, por mais que duas pessoas tenham afinidades e gostem uma da outra, elas jamais conseguirão ter as mesmas necessidades, na mesma hora, com a mesma intensidade...O que podemos fazer é expressar diretamente para a outra pessoa o que pensamos, sentimos e desejamos, e permitir que o outro também se expresse livremente. Colocando assim as cartas sobre a mesa, podemos então tentar chegar a um consenso, a um acordo, cada um cedendo um pouco, sem se anular. Às vezes, isso é possível; às vezes, o melhor consenso a que conseguimos chegar é “Concordamos que discordamos...”
Se houver um afeto genuíno e um verdadeiro respeito e aceitação pela individualidade do outro, poderemos continuar nos relacionando. Se, no entanto, constatarmos que o abismo entre as minhas expectativas e as do outro é muito grande, talvez seja melhor reconhecer isso, nos despedirmos com gratidão e cada um trilhar o seu caminho, com outros companheiros de viagem.
sábado, 9 de maio de 2015
quarta-feira, 6 de maio de 2015
sexta-feira, 24 de abril de 2015
Contratos familiares: códigos que nos impedem de ser o que somos
Estes “códigos” estão situados no mais profundo de nossas
mentes em forma de crenças e de todo tipo de inibições que nos paralisam.
Um contrato é um acordo entre duas partes que se comprometem
a dar algo e a receber algo em troca. Mas nem todos os contratos estão no
papel, nem sequer são verbalizados, nem tão pouco todos estão no plano da consciência.
Ainda mais, como no caso do nome, há contratos que aceitamos em desigualdade de
condições porque se “selam” na mais tenra infância: a criança intui que o descumprimento
implica em não ser querido, o que significa a morte. Nosso cérebro mais
primitivo nos dita a ordem de obedecer quando a ameaça é ser expulso de um clã
familiar.
Estes contratos podem afetar nossos quatro egos:
Exemplos de contratos intelectuais:
Muitas crenças que temos são contratos que mantemos com nossa árvore genealógica, ideias que nos foram transmitindo desde nossos bisavós e que não podemos questionar. (Devemos nos desfazer que qualquer crença que não seja bela e útil)
a) “Será advogado, como os homens de bem dessa família”
(Em árvores
onde o artista é considerado como um morto de fome, que na realidade não sabe
fazer nada)
b) “Nessa
casa se fala português”
(Não me
venha querer estudar línguas... você só precisa falar a língua materna)
c) “Você é
tonto como sua mãe”
(Uma
profecia que atua como uma maldição que acaba se cumprindo...)
d) “Na vida
devemos deixar as coisas iguais como nós as encontramos”
(Sinal
evidente de que a árvore está estagnada...)
e) “Um filho
nunca deve superar seu pai”
(Uma loucura
absoluta que se conecta com a neurose de fracasso)
Os contratos
intelectuais são como as “ideias irracionais” que descreve Albert Ellis, raízes
de nossas emoções perturbadas e comportamentos desajustados. A psicogenealogia
conecta com sua famosa e em muitos casos efetiva RET (Terapia Racional
Emotiva), no sentido de que a família configura um esquema de crenças tóxicas
que nós adotamos por lealdade a ela e que se movem em quatro eixos
fundamentais:
*Se você não
tem o que necessita, morre (“Se meu namorado me deixa, morro”)
A herança
tóxica é confundir a necessidade com o desejo. Se não tenho alimento, morro, mas
se desejo um namorado e não tenho, sigo vivendo...
*Isto é horrível (“É horrível que tenha que cancelar minhas férias”)
Se julga em
excesso. Não há nada categoricamente mal ou bom. Há situações que nos causam
mais ou menos dor. Se ordenarmos as situações dolorosas de 0 a 10 e no 10
colocarmos a morte de um ser querido, como valorizaremos cancelar as férias?
*Não suporto
(“Não suporto a solidão”)
As situações
que matam, são insuportáveis. Acreditar que algo é o limite entre a vida e a
morte nos faz sentirmos agonizantes cada vez que isso acontece. Isso nos leva a
preferir um desastre de relação amorosa, a solidão está proibida pela árvore,
porque significa aproximar-se da morte.
*Se acontece
algo ruim sempre há um culpado e ele tem que ser condenado
A família nos
ensina a julgar e buscar culpados para descarregar a responsabilidade do que
aconteceu, ao invés de responsabilizarmos nós mesmos. Os acontecimentos são uma
confluência de fatores, nada tem uma única causa. Se nos sentimos culpados de
algo, a melhor medicina é uma fórmula com três elementos: aceitação, reparação
e aprendizado do que aconteceu para evitar repetir o mesmo erro no futuro.
Exemplos de contratos emocionais:
a) Não
cresça
(Se você
crescer irá abandonar seus pais. Essa ordem o manterá com uma idade emocional
de 10 anos para o resto da vida)
b) Aqui
somos “palmeirenses”
(Desde o
primeiro mês de vida o bebe é sócio do clube. Quando cresce não tem
alternativa, se não gosta de futebol ou não é palmeirense, será considerado um traidor
ou um doente)
c) “Não seja
tonto e não tenha namorada”
(Fique com a mamãe... ela não vai te desapontar)
d) “um casal
é para toda a vida”
(Ninguém se
divorciará jamais, em nossa família todos são muito católicos)
Os contratos
emocionais nos atam com força ao passado e fomentam as relações baseadas na dependência
emocional. Dissolver esses contratos é abrir finalmente a porta da liberdade de
amar com um nível de consciência superior.
Exemplos de contratos libidinais
Aqui estão
todas as inibições criativas e sexuais
a)” O
teatro, a pintura e a música são uma perda de tempo”
(É como
dizer que não se deve dedicar a coisas que não são de proveito...)
b)”Esta
relação não me convém”
(Poderíamos
nos perguntar: em realidade, a quem não convém?)
c) “Você se
casará aos 25 anos e aos 26 terá sua única filha”
Este poderia
ser um contrato inconsciente que se repete de geração em geração. Um projeto
que a árvore tem para nós
d) “A mulher
que expressa desejo sexual é uma fulana”
(Se o sexo
da mulher é só um instrumento de procriação,
se a proíbem de gozar com sua energia libidinal e finalmente da criação
e da vida)
A proibição da
homossexualidade e as práticas sexuais não existentes no repertório da árvore,
também são contratos que no descumprimento nos bloqueiam a libido ou nos fazem
sentir culpados e merecedores de castigos se “sairmos do armário”.
Exemplos de contratos
materiais-corporais-econômicos:
As inibições
econômicas. É necessário que encontremos os elementos que permitem separarmos a
violência, o medo e a culpabilidade.
a) ”Você é idêntico
ao seu avô”
(E com isso
uma das linhagens toma posse do filho)
b) “Não
toque nos botões que quebrará"
(Quando não
te deixam tocar em nada é porque você não tem espaço)
c) “O
dinheiro é pecado”
(Se nos
fazem acreditar que o dinheiro é sujo, nos gerará muita culpa ganhá-lo)
d) “o que
arisca perde”, “Mais vale um pássaro na mão do que cem voando”, “Mais vale um
mal conhecido do que um bem por conhecer...”
(Sair do
território é uma deslealdade imperdoável e temos um medo ancestral de não
voltar a sermos admitidos no clã)
Tudo isso
nos faz acomodar em um relacionamento que já não contribui em nada, um trabalho
insatisfatório, uma casa que não é um lar e também uma cidade, um grupo de
amigos, etc. Instalados em um território para sempre, porque nos ensinaram que
arriscar é perder tudo, em lugar de seguir nossos desejos como sábio caminho de
transformação.
Os contratos
se cumprem por lealdade, mas também pelo temor das consequências. Digamos que
há um medo de ser castigado, que se cumpram essas previsões (maldições): “Se
você se divorcia, falarão mal de você”, “se for um artista, viverá na pobreza”.
Um ato psicomágico para curar esse tipo de medo do descumprimento ao que os
pais ordenaram, consistiria em realizar metaforicamente a previsão, encenando
para eles.
Alejandro
Jodorowsky nos diz em uma de suas dez receitas para ser feliz: “ Não há alivio
maior que começar a ser o que na verdade somos”. Desde a infância nos impõem destinos
a fora. É conveniente recordar que não estamos no mundo para realizar os sonhos
de nossos pais, mas os nossos próprios sonhos.
Via http://planosinfin.com/contratos-familiares-codigos-que-nos-impiden-ser-lo-que-somos-alejandro-jodorowsky/
Tradução: Jennifer Giusti
Via http://planosinfin.com/contratos-familiares-codigos-que-nos-impiden-ser-lo-que-somos-alejandro-jodorowsky/
Tradução: Jennifer Giusti
segunda-feira, 23 de março de 2015
Relacionamentos
Liberdade
Somente os pássaros engaiolados são dignos de confiança. Pássaros engaiolados não fogem. Mas, ao se engaiolar o pássaro, perde-se a beleza do seu voo, que era o que se amava.
Pássaros engaiolados transformam-se em patos gordos. Patos gordos são dignos de confiança: nem podem nem querem voar. Os espaços vazios não os fascinam. Nunca olham para cima, só para baixo. Nem sabem da existência do céu. Já os pintassilgos são indignos de confiança. Sabem voar. Basta que a porta da gaiola se abra para que voem.
Mais fundamental que o amor é a liberdade. A liberdade é o alimento do amor. O amor é pássaro que não vive em gaiola. Basta engaiolá-lo para que ele morra. Ter ciúme é reconhecer a liberdade do amor.
O desejo de liberdade é mais forte que a paixão. Pássaro, eu não amaria quem me cortasse as asas. Barco, eu não amaria quem me amarrasse no cais.
Jogo de amor
Há quem pense que o objetivo do jogo amoroso é o orgasmo. Outros pensam que é a fecundação. Os amantes sabem diferente. Sabem que o objetivo do jogo amoroso é ele mesmo, o prazer e a alegria de estar brincando.
A conversa é uma metáfora dos jogos amorosos. Quem não sabe conversar não sabe transar.
Casais, brigando, estão jogando tênis: o que um deseja é dar uma cortada, e tirar o outro da jogada. Casais que estão amando jogam frescobol. O que importa é ir e vir, ir e vir, ir e vir, sem fim...
Sedução do vento
Quem está feliz com a segurança é porque deixou de amar. Somente as pessoas que deixaram de amar se contentam com a segurança. Quem ama ouve sempre a sedução do vento...
Contrato
Talvez o amor não passe de uma deliciosa ilusão que se realiza em momentos sagrados, raros. Não pode ser capturado. Um casamento que se baseasse no amor teria que ser efêmero. Por isso o casamento não se baseia no amor. Ele se baseia num contrato selado por promessas e confirmado por testemunhas.
Observe os casais nos restaurantes. Pela forma como eles conversam durante a refeição você pode concluir sobre a relação. Se conversam e riem, é porque o amor está vivo. Se comem olhando para o prato e em silêncio, é porque o amor está estragado.
Aqui abrem-se as possibilidades. Primeira: uma das partes – ou as duas – encontrou um novo amor e se entregou a ele. Nesse caso, é (ou não) infiel e uma relação formal apodrecida, e fiel a uma nova relação amorosa. Segunda: os dois vão ser pelo resto da vida fiéis às promessas e ao contrato, olhando para o prato enquanto comem, sem rir e conversar. Na sua lápide se escreverá: “Foram fiéis a vida inteira...”.
Arte de fazer amor
Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (esses órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.
Namoro
O namoro tem vida intensa e breve. E é por isso que é tão belo e a sua memória – saudade – mora e dói em nossos corpos. Fica como nostalgia de um amor que deveria durar para sempre. Romeu e Julieta tinham de morrer, para que sua estória dissesse a nossa verdade e quiséssemos sempre ouvi-la de novo. Ah! Como seria bom se fôssemos sempre jovens, puros e ardentes! Então o mundo inteiro seria luminoso e viveríamos a cada dia a promessa da religião: a ressurreição do corpo. Corpos enamorados são corpos ressuscitados.
Há a estória da menina e do pássaro encantado. “Preciso ir”, dizia o pássaro. “Não vá”, respondia a menina, ingênua. E ele respondia: “Vou para que o amor retorne. Você não entende que só sou encantado por causa da saudade?”. O namoro acontece somente na dor da distância, quando os dedos se tocam de leve.
FONTE: ALVES, Rubem. Do universo à jabuticaba. Ed. Planeta, SP, 2010, pg. 150/152/153
Somente os pássaros engaiolados são dignos de confiança. Pássaros engaiolados não fogem. Mas, ao se engaiolar o pássaro, perde-se a beleza do seu voo, que era o que se amava.
Pássaros engaiolados transformam-se em patos gordos. Patos gordos são dignos de confiança: nem podem nem querem voar. Os espaços vazios não os fascinam. Nunca olham para cima, só para baixo. Nem sabem da existência do céu. Já os pintassilgos são indignos de confiança. Sabem voar. Basta que a porta da gaiola se abra para que voem.
Mais fundamental que o amor é a liberdade. A liberdade é o alimento do amor. O amor é pássaro que não vive em gaiola. Basta engaiolá-lo para que ele morra. Ter ciúme é reconhecer a liberdade do amor.
O desejo de liberdade é mais forte que a paixão. Pássaro, eu não amaria quem me cortasse as asas. Barco, eu não amaria quem me amarrasse no cais.
Jogo de amor
Há quem pense que o objetivo do jogo amoroso é o orgasmo. Outros pensam que é a fecundação. Os amantes sabem diferente. Sabem que o objetivo do jogo amoroso é ele mesmo, o prazer e a alegria de estar brincando.
A conversa é uma metáfora dos jogos amorosos. Quem não sabe conversar não sabe transar.
Casais, brigando, estão jogando tênis: o que um deseja é dar uma cortada, e tirar o outro da jogada. Casais que estão amando jogam frescobol. O que importa é ir e vir, ir e vir, ir e vir, sem fim...
Quem está feliz com a segurança é porque deixou de amar. Somente as pessoas que deixaram de amar se contentam com a segurança. Quem ama ouve sempre a sedução do vento...
Contrato
Talvez o amor não passe de uma deliciosa ilusão que se realiza em momentos sagrados, raros. Não pode ser capturado. Um casamento que se baseasse no amor teria que ser efêmero. Por isso o casamento não se baseia no amor. Ele se baseia num contrato selado por promessas e confirmado por testemunhas.
Observe os casais nos restaurantes. Pela forma como eles conversam durante a refeição você pode concluir sobre a relação. Se conversam e riem, é porque o amor está vivo. Se comem olhando para o prato e em silêncio, é porque o amor está estragado.
Aqui abrem-se as possibilidades. Primeira: uma das partes – ou as duas – encontrou um novo amor e se entregou a ele. Nesse caso, é (ou não) infiel e uma relação formal apodrecida, e fiel a uma nova relação amorosa. Segunda: os dois vão ser pelo resto da vida fiéis às promessas e ao contrato, olhando para o prato enquanto comem, sem rir e conversar. Na sua lápide se escreverá: “Foram fiéis a vida inteira...”.
Arte de fazer amor
Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (esses órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.
Namoro
O namoro tem vida intensa e breve. E é por isso que é tão belo e a sua memória – saudade – mora e dói em nossos corpos. Fica como nostalgia de um amor que deveria durar para sempre. Romeu e Julieta tinham de morrer, para que sua estória dissesse a nossa verdade e quiséssemos sempre ouvi-la de novo. Ah! Como seria bom se fôssemos sempre jovens, puros e ardentes! Então o mundo inteiro seria luminoso e viveríamos a cada dia a promessa da religião: a ressurreição do corpo. Corpos enamorados são corpos ressuscitados.
Há a estória da menina e do pássaro encantado. “Preciso ir”, dizia o pássaro. “Não vá”, respondia a menina, ingênua. E ele respondia: “Vou para que o amor retorne. Você não entende que só sou encantado por causa da saudade?”. O namoro acontece somente na dor da distância, quando os dedos se tocam de leve.
Ilusão
Vento engarrafado não serve para empinar pipas nem faz o cabelo voar... Gota de chuva brilhando em folha de couve a gente só pode olhar e se extasiar. Alguns pensam que o casamento faz o milagre, que é capaz de por a gota de chuva no anel, que ele consegue engaiolar o vento.
Amamos uma pessoa pela poesia que vemos escrita no seu corpo.
Bem dizia Adélia Prado que “erótica é a alma”.
Só o amor não basta
O amor não basta. Dona Baratinha sabia disso e perguntava aos seus pretendentes: “Como é que você faz de noite?”. Mas há outra pergunta tão importante quanto esta, nascida da curiosidade sexual: “Como é que você faz de dia?”.
Espelho
Amamos as pessoas não pela beleza delas, mas pela nossa beleza que aparece refletida nos olhos dela. O que é uma bela pessoa? É aquela em que nos vemos belos.
Somos mendigos de olhares. Olhos são espelhos. Cada encontro é um pedido: “Dize-me, espelho meu, haverá no mundo alguém mais belo que eu?”
FONTE: ALVES, Rubem. Do universo à jabuticaba. Ed. Planeta, SP, 2010, pg. 150/152/153
quarta-feira, 18 de março de 2015
quinta-feira, 12 de março de 2015
Qualquer caminho é longo, quando vão os pés e o coração não vai...
MUDE
Edson Marques
Mas comece devagar,
porque a direção é mais importante
que a velocidade.
Sente-se em outra cadeira,
no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair,
procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho,
ande por outras ruas,
calmamente,
observando com atenção
os lugares por onde
você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os teus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira
para passear livremente na praia,
ou no parque,
e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas
e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...
depois, procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv,
compre outros jornais...
leia outros livros,
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia
numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos,
escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores,
novas delícias.
Tente o novo todo dia.
o novo lado,
o novo método,
o novo sabor,
o novo jeito,
o novo prazer,
o novo amor.
a nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais,
vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida,
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo,
jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado...
outra marca de sabonete,
outro creme dental...
tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito,
cada vez mais,
de modos diferentes.
Troque de bolsa,
de carteira,
de malas,
troque de carro,
compre novos óculos,
escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios,
quebre delicadamente
esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas,
outros cabeleireiros,
outros teatros,
visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um outro emprego,
uma nova ocupação,
um trabalho mais light,
mais prazeroso,
mais digno,
mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre,
invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,
longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores
e coisas piores do que as já conhecidas,
mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento,
o dinamismo,
a energia.
Só o que está morto não muda!
Edson Marques
Mas comece devagar,
porque a direção é mais importante
que a velocidade.
Sente-se em outra cadeira,
no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair,
procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho,
ande por outras ruas,
calmamente,
observando com atenção
os lugares por onde
você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os teus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira
para passear livremente na praia,
ou no parque,
e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas
e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...
depois, procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv,
compre outros jornais...
leia outros livros,
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia
numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos,
escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores,
novas delícias.
Tente o novo todo dia.
o novo lado,
o novo método,
o novo sabor,
o novo jeito,
o novo prazer,
o novo amor.
a nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais,
vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida,
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo,
jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado...
outra marca de sabonete,
outro creme dental...
tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito,
cada vez mais,
de modos diferentes.
Troque de bolsa,
de carteira,
de malas,
troque de carro,
compre novos óculos,
escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios,
quebre delicadamente
esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas,
outros cabeleireiros,
outros teatros,
visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um outro emprego,
uma nova ocupação,
um trabalho mais light,
mais prazeroso,
mais digno,
mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre,
invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,
longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores
e coisas piores do que as já conhecidas,
mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento,
o dinamismo,
a energia.
Só o que está morto não muda!
sábado, 28 de fevereiro de 2015
se eu fosse eu
Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor sentir.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro.
“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.
Clarice Lispector
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
Carta a um jovem poeta
Paris, 17 de fevereiro de 1903
Prezadíssimo Senhor,
Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizívies quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.
Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.
Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.
Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer Maria Rilke
Foto e Inutensílio poético de Gab Marcondes
http://inutensiliospoeticos.wix.com/gabmarcondes
domingo, 22 de fevereiro de 2015
sábado, 21 de fevereiro de 2015
O direito à tristeza
Por Contardo Calligaris
As crianças têm dois deveres. Um, salutar, é o dever de crescer e parar de ser crianças. O outro, mais complicado, é o de ser felizes, ou melhor, de encenar a felicidade para os adultos. Esses dois deveres são um pouco contraditórios, pois, crescendo e saindo da infância, a gente descobre, por exemplo, que os picolés não são de graça. Portanto, torna-se mais difícil saltitar sorrindo pelos parques à espera de que a máquina fotográfica do papai imortalize o momento. Em suma, se obedeço ao dever de crescer, desobedeço ao dever de ser feliz.A descoberta dessa contradição pode levar uma criança a desistir de crescer. E pode fazer a tristeza (às vezes o desespero) de outra criança, incomodada pela tarefa de ser, para a família inteira, a representante da felicidade que os adultos perderam (por serem adultos, porque a vida é dura, porque doem as costas, porque o casamento é tenso, porque não sabemos direito o que desejamos).
A ideia da infância como um tempo específico, bem distinto da vida adulta, sem as atrapalhações dos desejos sexuais, sem os apertos da necessidade de ganhar a vida, é recente. Tem pouco mais de 200 anos. Idealizar a infância como tempo feliz é uma peça central do sentimento e da ideologia da modernidade.É crucial lembrar-se disso na hora em que somos convidados a espreitar índices e sinais de depressão nas nossas crianças.
O convite é irresistível, pois a criança deprimida contraria nossa vontade de vê-la feliz. Um menino ou uma menina tristes nos privam de um espetáculo ao qual achamos que temos direito: o espetáculo da felicidade à qual aspiramos, da qual somos frustrados e que sobra para as crianças como uma tarefa. “Meu filho, minha filha, seja feliz por mim.”É só escutar os adultos falando de suas crianças tristes para constatar que a vida da criança é sistematicamente desconhecida por aqueles que parecem se preocupar com a felicidade do rebento. “Como pode, com tudo que fazemos e fizemos por ela?” ou “Como pode, ele que não tem preocupação nenhuma, ele que é criança?”. A criança triste é uma espécie de desertor; abandonou seu lugar na peça da vida dos adultos, tirou sua fantasia de palhaço.Conselho aos adultos (pais, terapeutas etc.): quando uma criança parece estar deprimida, o mais urgente não é reconhecer os “sinais” de uma doença e inventar jeitos de lhe devolver uma caricatura de sorriso. O mais urgente, para seu bem, é reconhecer que uma criança tem o DIREITO de estar triste, porque ela não é apenas um boneco cuja euforia deve nos consolar das perdas e danos de nossa existência; ela tem vida própria.Mais uma observação para evitar a precipitação. Aparentemente, nas últimas décadas, a depressão se tornou uma doença muito comum. Será que somos mais tristes que nossos pais e antepassados próximos? Acredito que não. As más línguas dizem que a depressão foi promovida como doença pelas indústrias farmacêuticas, quando encontraram um remédio que podiam comercializar para “curá-la”. Mas isso seria o de menos. É mais importante notar que a depressão se tornou uma doença tão relevante (pelo número de doentes e pela gravidade do sofrimento) porque ela é um pecado contra o espírito do tempo. Quem se deprime não pega peixes e ainda menos sobe no bonde andando.Será que vamos conseguir transformar também a tristeza infantil num pecado?Claro que sim. Aliás, amanhã, quando seu filho voltar da escola, além de verificar se ele não está com frieiras, veja também se ele não pegou uma deprê. E, se for o caso, dê um castigo, pois, afinal, como é que ele ousa fazer cara feia quando acabamos de lhe comprar um gameboy? Ora! E, se o castigo não bastar, pílulas e terapia nele. Qualquer coisa para evitar de admitir que a infância não é nenhum paraíso.
Texto via Laboratório de Sensibilidade
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