domingo, 14 de junho de 2020

A traição


          A traição também é uma forma de perda. O que é perdido é a inocência, a confiança e o relacionamento simples. Todos nós somos traídos de vez em quando, mesmo no nível cósmico. As suposições do ego, as fantasias pessoais de onipotência, sofrem duros golpes. (Nietzsche comentou o quão desapontados ficamos no dia em que percebemos que não éramos Deus.)
            A discrepância entre as fantasias do ego e as limitações da nossa frágil vida parece amiúde parte de uma traição cósmica, como se um pai ou uma mãe universal nos tivesse decepcionado. Como Frost tão espirituosamente observou: “Senhor, perdoa meu pequeno gracejo contigo/ E perdoarei Teu grande gracejo comigo”. E Jesus, na cruz, grita: “Meu Deus, meu Deus... por que Tu me abandonaste? ”.
            Nós queremos naturalmente uma proteção contra o mundo preocupante, contra a ambivalência e a ambiguidade, e projetamos a necessidade da criança da proteção dos pais sobre o indiferente universo. A expectativa de proteção da criança e de amor é frequentemente traída. Mesmo no lar mais benigno, os ferimentos gêmeos da dominação e do abandono são inevitáveis. Talvez nada faça gelar mais o coração dos pais do que a compreensão de que apenas por sermos nós mesmos nós ferimos nossos filhos. Desse modo, toda criança se sente traída pela qualidade humana, pelas limitações dos pais – algumas mais do que outras. Aldo Carotenuto faz o seguinte comentário:

Só podemos ser traídos por aqueles em quem confiamos. No entanto, temos de acreditar. Uma pessoa que não tenha fé e se recuse a amar por medo de ser traída, certamente estará livre desses tormentos, mas quem sabe de quantas coisas ela estará livre?
                                   
            Quanto maior essa “traição” da inocência, confiança e fé, mais provável é que a criança cresça desconfiando do mundo. A experiência da profunda traição conduz à paranoia, uma universalização de transferência da perda. Um homem de quem tratei durante um breve espaço de tempo, lembrou-se do dia em que sua mãe o abandonou para sempre. Embora sua esposa fosse amorosa e dedicada, ele não conseguia confiar nela, segui-a por toda a parte, insistia em que ela se submetesse a testes de polígrafo para afirmar sua lealdade, e via no menor dos incidentes provas de traição, que ele considerava sua sina. Apesar de ela repetidamente lhe afirmar que era fiel, ele finalmente a afastou de si, vendo na partida dela a confirmação do que sempre acreditara, ou seja, que ele fora traído para sempre.
            Com efeito, pensamentos paranoicos estão até certo ponto ocultos em nós, pois todos fomos feridos pelo cosmos, pela condição existencial, bem como por aqueles em que depositamos a nossa confiança.
            A confiança e a traição são opostos necessários. Se alguém foi traído – e quem não foi – torna-se difícil confiar. Frequentemente quando a criança foi profundamente traída através da negligência ou do abuso dos pais, mais tarde ela se liga a alguém que irá repetir a traição – um padrão chamado “formação de reação”, ou uma “profecia que se autorealiza” – ou evita a intimidade na esperança de evitar ser novamente ferida. Em ambas as estratégias, o legado do ferimento passado domina as escolhas do presente. A pessoa ainda é definida, como no caso da culpa, pelo passado. No entanto, estar em um relacionamento, investir nele com confiança, significa também pressupor a capacidade da traição. Se não confiamos, não estamos investidos da profundidade que torna possível a intimidade. Se não investimos nessa profundidade carregada de riscos, então a genuína intimidade é frustrada. O paradoxo da díade confiança/traição, portanto, é que cada uma é pressuposta pela outra. Sem confiança, não há profundidade; sem profundidade, não existe a verdadeira traição.
            À semelhança do que observamos na culpa, é extremamente difícil perdoar a traição, especialmente aquela que parece deliberada. No entanto, a capacidade de perdoar não apenas é um reconhecimento implícito da nossa capacidade de trair, como também é a única medida capaz de nos libertar dos grilhões do passado. Não vemos com frequência almas amarguradas que ainda não conseguiram perdoar o antigo cônjuge que as traiu? Elas ainda estão, através da sua escravidão ao passado, ainda casadas com o traidor, ainda são definidas e corroídas pelo ácido do ódio. Também já vi pessoas divorciadas que carregam o ódio por antigos cônjuges, não pelo que eles fizeram, e sim pelo que eles não fizeram.
            Julianne era uma Filhinha do Papai. Ela conheceu um homem que se propôs a cuidar dela. Embora ela ficasse impaciente com a liderança dele, e ele com a carência dela, ambos eram definidos por esse contrato inconsciente, ou seja, que ele seria o marido-pai e ela a filha dedicada. Quando o marido superou psicologicamente essa barganha inconsciente, realizada quando ambos estavam com vinte e poucos anos, ela ficou furiosa. Ela permaneceu infantil e petulante, sem perceber que a partida do marido era uma chamada para que ela despertasse para a idade adulta. A traição dele lhe pareceu total, imperdoável, quando, na verdade, ela tinha sido traída pela fusão pai-filha da qual ela nunca havia se separado. Não é preciso dizer que ela logo encontrou outro homem com quem pôde representar a antiga dependência. O convite para o crescimento foi recusado.
            A traição é frequentemente vivenciada como um isolamento do eu. O outro com quem contávamos, ou com relação a quem mantínhamos certas expectativas, ou com quem brincávamos uma inconsciente folie à deux tornou-se agora suspeito e nossas suposições fundamentais estão abaladas. Nesse estado alterado, um considerável crescimento torna-se possível. Podemos aprender com nossas feridas, mas se não o fizermos, nós as repetiremos em outro contexto ou nos identificaremos com elas. Assim, muitos permanecem presos ao passado, “identificados com a ferida”. Deus parece “trair” Jó, mas no final as suposições casuais de Jó sobre o universo são abaladas; ele se desloca para um novo nível de consciência e converte sua provação em uma benção desse Deus. Jesus se sente traído não apenas por Judas, mas também por seu Pai, mas no entanto, em sua aceitação final ele alcança a consumação epifânica no Gólgota.
            Naturalmente nós nos sentimos ultrajados com a traição e temos a probabilidade de tentar nos vingarmos. Mas a vingança, além de constringir em vez de expandir, nos prende ao passado. Aqueles consumidos pela vingança, por mais legitima que seja sua queixa, permanecem eternas vítimas. Eles ainda se encontram na traição original, e toda a vida que poderia ter sido deles a partir de então é frustrada. Analogamente, a pessoa pode, através de várias formas de negação, escolher permanecer inconsciente. Essa manobra, que é uma recusa de sentir a dor que a pessoa já sente, é uma resistência ao crescimento obrigado por qualquer Éden perdido, qualquer exigência de uma expansão de consciência.
            A terceira tentação da pessoa traída é generalizar a experiência, como na paranoia do homem cuja mãe o abandonou. Se ela o deixou, certamente qualquer outra mulher de quem ele gostasse faria o mesmo. Essa paranoia, por mais compreensível que possa ser a partir da estrutura dessa experiência, transforma-se em um cinismo contaminante com relação a todos os relacionamentos. A tendência de generalizar a partir de uma experiência aguda de traição mantém a pessoa no continuum que vai da suspeita e da fuga da intimidade à paranoia e à tendência de ser o bode expiatório.
            A traição nos leva em direção à individuação. Se a traição é da nossa ingenuidade existencial, somos impulsionados na direção do abraço da sabedoria maior do universo cuja dialética parece ser o apego e a perda; se a traição é da nossa dependência, somos levados a enfrentar o ponto em que ansiamos por permanecer infantis; se a traição é de um ser consciente com relação a outro, somos levados a sofrer e abraçar as polaridades que existem não apenas no traidor, como também em nós mesmos. Em todos os casos, se não permanecemos atrás, presos a recriminações, ficamos mais expandidos, completos e conscientes. Carotenuto resumiu muito bem este dilema:

A experiência da traição, traduzida em termos psicológicos, proporciona a oportunidade de vivenciarmos um dos processos mais fundamentais da vida psíquica, a integração da ambivalência, incluindo os sentimentos amor-ódio existentes em todos os relacionamentos. É preciso enfatizar novamente que essa experiência não envolve apenas aquele que geralmente leva a culpa, mas também o traído, que inconscientemente desencadeou os eventos que provocaram a traição.     

            A pílula mais amarga na traição, portanto, pode ser reconhecermos relutantemente, amiúde anos depois, que nós fizemos parte do balé conivente que com o tempo provocou a traição. Se conseguirmos engolir essa amarga pílula, teremos uma sensação bem mais ampla de controle da nossa sombra. Nem sempre iremos gostar do que seremos intimados a reconhecer. Mais uma vez, como disse Jung, “A experiência do Eu é sempre uma derrota para o ego. ” Ao descrever sua descida ao seu inconsciente na segunda década deste século, Jung nos conta como foi repetidamente forçado a dizer: “Eis outra coisa que você não sabia a respeito de si mesmo”. Mas a partir dessa amarga erva, muita consciência evolui.
            Através do sofrimento e da perda, da dor e da traição somos puxados para baixo, e possivelmente através, em direção a um Weltanschauung mais amplo. Devin, por exemplo, parecia preso no emaranhado da dor e da perda da esposa. Mas a dessuetude e desorientação desse período desproporcional com relação à sua perda. Ao trabalhar a experiência, ele veio a perceber que ele estava perdido, chorando sua vida não vivida, traída desde a infância por ele sempre viver o plano de outra pessoa. Somente sofrendo durante esses dois terríveis anos ele pôde finalmente chegar ao início de sua própria jornada.
            A mensagem da perda, da dor e da traição é que não podemos nos agarrar a nada, não podemos ter ninguém ou nada como certo, não podemos evitar a dor aguda. Mas o que subsiste é o convite à consciência. O que é constante em meio à inconstância são as intimações à individuação. Não somos nem nosso ponto de origem nem nossa meta; o primeiro há muito já passou, a última avança eternamente enquanto avançamos. Nós somos a própria jornada. A perda, a dor e a traição não são apenas lugares sombrios que precisamos de má vontade visitar; eles são fundamentais para o amadurecimento da consciência. Eles são tão parte da jornada quanto os lugares onde vemos um intervalo e queremos permanecer. O grande ritmo do ganho e da perda está fora do nosso controle; o que continua dentro do nosso controle é a atitude de estarmos dispostos a descobrir até nas mais amargas perdas o que permanece para ser vivido.


Hollis, James. A traição. In: Os Pantanais da alma - p. 62-68. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2011.


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