A
traição também é uma forma de perda. O que é perdido é a inocência, a confiança
e o relacionamento simples. Todos nós somos traídos de vez em quando, mesmo no
nível cósmico. As suposições do ego, as fantasias pessoais de onipotência,
sofrem duros golpes. (Nietzsche comentou o quão desapontados ficamos no dia em
que percebemos que não éramos Deus.)
A
discrepância entre as fantasias do ego e as limitações da nossa frágil vida parece
amiúde parte de uma traição cósmica, como se um pai ou uma mãe universal nos
tivesse decepcionado. Como Frost tão espirituosamente observou: “Senhor, perdoa
meu pequeno gracejo contigo/ E perdoarei Teu grande gracejo comigo”. E Jesus,
na cruz, grita: “Meu Deus, meu Deus... por que Tu me abandonaste? ”.
Nós
queremos naturalmente uma proteção contra o mundo preocupante, contra a ambivalência
e a ambiguidade, e projetamos a necessidade da criança da proteção dos pais
sobre o indiferente universo. A expectativa de proteção da criança e de amor é
frequentemente traída. Mesmo no lar mais benigno, os ferimentos gêmeos da
dominação e do abandono são inevitáveis. Talvez nada faça gelar mais o coração
dos pais do que a compreensão de que apenas por sermos nós mesmos nós ferimos nossos
filhos. Desse modo, toda criança se sente traída pela qualidade humana, pelas
limitações dos pais – algumas mais do que outras. Aldo Carotenuto faz o
seguinte comentário:
Só podemos ser traídos por aqueles em
quem confiamos. No entanto, temos de acreditar. Uma pessoa que não tenha fé e
se recuse a amar por medo de ser traída, certamente estará livre desses
tormentos, mas quem sabe de quantas coisas ela estará livre?
Quanto
maior essa “traição” da inocência, confiança e fé, mais provável é que a
criança cresça desconfiando do mundo. A experiência da profunda traição conduz
à paranoia, uma universalização de transferência da perda. Um homem de quem
tratei durante um breve espaço de tempo, lembrou-se do dia em que sua mãe o
abandonou para sempre. Embora sua esposa fosse amorosa e dedicada, ele não
conseguia confiar nela, segui-a por toda a parte, insistia em que ela se
submetesse a testes de polígrafo para afirmar sua lealdade, e via no menor dos
incidentes provas de traição, que ele considerava sua sina. Apesar de ela repetidamente
lhe afirmar que era fiel, ele finalmente a afastou de si, vendo na partida dela
a confirmação do que sempre acreditara, ou seja, que ele fora traído para
sempre.
Com
efeito, pensamentos paranoicos estão até certo ponto ocultos em nós, pois todos
fomos feridos pelo cosmos, pela condição existencial, bem como por aqueles em
que depositamos a nossa confiança.
A
confiança e a traição são opostos necessários. Se alguém foi traído – e quem
não foi – torna-se difícil confiar. Frequentemente quando a criança foi profundamente
traída através da negligência ou do abuso dos pais, mais tarde ela se liga a
alguém que irá repetir a traição – um padrão chamado “formação de reação”, ou
uma “profecia que se autorealiza” – ou evita a intimidade na esperança de
evitar ser novamente ferida. Em ambas as estratégias, o legado do ferimento
passado domina as escolhas do presente. A pessoa ainda é definida, como no caso
da culpa, pelo passado. No entanto, estar em um relacionamento, investir nele
com confiança, significa também pressupor a capacidade da traição. Se não
confiamos, não estamos investidos da profundidade que torna possível a
intimidade. Se não investimos nessa profundidade carregada de riscos, então a genuína
intimidade é frustrada. O paradoxo da díade confiança/traição, portanto, é que
cada uma é pressuposta pela outra. Sem confiança, não há profundidade; sem
profundidade, não existe a verdadeira traição.
À
semelhança do que observamos na culpa, é extremamente difícil perdoar a
traição, especialmente aquela que parece deliberada. No entanto, a capacidade
de perdoar não apenas é um reconhecimento implícito da nossa capacidade de
trair, como também é a única medida capaz de nos libertar dos grilhões do
passado. Não vemos com frequência almas amarguradas que ainda não conseguiram
perdoar o antigo cônjuge que as traiu? Elas ainda estão, através da sua
escravidão ao passado, ainda casadas com o traidor, ainda são definidas e
corroídas pelo ácido do ódio. Também já vi pessoas divorciadas que carregam o
ódio por antigos cônjuges, não pelo que eles fizeram, e sim pelo que eles não
fizeram.
Julianne
era uma Filhinha do Papai. Ela conheceu um homem que se propôs a cuidar dela.
Embora ela ficasse impaciente com a liderança dele, e ele com a carência dela,
ambos eram definidos por esse contrato inconsciente, ou seja, que ele seria o
marido-pai e ela a filha dedicada. Quando o marido superou psicologicamente
essa barganha inconsciente, realizada quando ambos estavam com vinte e poucos
anos, ela ficou furiosa. Ela permaneceu infantil e petulante, sem perceber que
a partida do marido era uma chamada para que ela despertasse para a idade
adulta. A traição dele lhe pareceu total, imperdoável, quando, na verdade, ela
tinha sido traída pela fusão pai-filha da qual ela nunca havia se separado. Não
é preciso dizer que ela logo encontrou outro homem com quem pôde representar a
antiga dependência. O convite para o crescimento foi recusado.
A
traição é frequentemente vivenciada como um isolamento do eu. O outro com quem
contávamos, ou com relação a quem mantínhamos certas expectativas, ou com quem
brincávamos uma inconsciente folie à deux
tornou-se agora suspeito e nossas suposições fundamentais estão abaladas.
Nesse estado alterado, um considerável crescimento torna-se possível. Podemos
aprender com nossas feridas, mas se não o fizermos, nós as repetiremos em outro
contexto ou nos identificaremos com elas. Assim, muitos permanecem presos ao
passado, “identificados com a ferida”. Deus parece “trair” Jó, mas no final as
suposições casuais de Jó sobre o universo são abaladas; ele se desloca para um
novo nível de consciência e converte sua provação em uma benção desse Deus. Jesus
se sente traído não apenas por Judas, mas também por seu Pai, mas no entanto,
em sua aceitação final ele alcança a consumação epifânica no Gólgota.
Naturalmente
nós nos sentimos ultrajados com a traição e temos a probabilidade de tentar nos
vingarmos. Mas a vingança, além de constringir em vez de expandir, nos prende
ao passado. Aqueles consumidos pela vingança, por mais legitima que seja sua
queixa, permanecem eternas vítimas. Eles ainda se encontram na traição
original, e toda a vida que poderia ter sido deles a partir de então é
frustrada. Analogamente, a pessoa pode, através de várias formas de negação,
escolher permanecer inconsciente. Essa manobra, que é uma recusa de sentir a
dor que a pessoa já sente, é uma resistência ao crescimento obrigado por
qualquer Éden perdido, qualquer exigência de uma expansão de consciência.
A
terceira tentação da pessoa traída é generalizar a experiência, como na
paranoia do homem cuja mãe o abandonou. Se ela o deixou, certamente qualquer
outra mulher de quem ele gostasse faria o mesmo. Essa paranoia, por mais compreensível
que possa ser a partir da estrutura dessa experiência, transforma-se em um
cinismo contaminante com relação a todos os relacionamentos. A tendência de
generalizar a partir de uma experiência aguda de traição mantém a pessoa no
continuum que vai da suspeita e da fuga da intimidade à paranoia e à tendência de
ser o bode expiatório.
A
traição nos leva em direção à individuação. Se a traição é da nossa ingenuidade
existencial, somos impulsionados na direção do abraço da sabedoria maior do
universo cuja dialética parece ser o apego e a perda; se a traição é da nossa dependência,
somos levados a enfrentar o ponto em que ansiamos por permanecer infantis; se a
traição é de um ser consciente com relação a outro, somos levados a sofrer e
abraçar as polaridades que existem não apenas no traidor, como também em nós
mesmos. Em todos os casos, se não permanecemos atrás, presos a recriminações,
ficamos mais expandidos, completos e conscientes. Carotenuto resumiu muito bem
este dilema:
A experiência da traição, traduzida
em termos psicológicos, proporciona a
oportunidade de vivenciarmos um dos processos mais fundamentais da vida psíquica,
a integração da ambivalência, incluindo os sentimentos amor-ódio existentes em
todos os relacionamentos. É preciso enfatizar novamente que essa experiência não
envolve apenas aquele que geralmente leva a culpa, mas também o traído, que
inconscientemente desencadeou os eventos que provocaram a traição.
A
pílula mais amarga na traição, portanto, pode ser reconhecermos relutantemente,
amiúde anos depois, que nós fizemos parte do balé conivente que com o tempo
provocou a traição. Se conseguirmos engolir essa amarga pílula, teremos uma
sensação bem mais ampla de controle da nossa sombra. Nem sempre iremos gostar
do que seremos intimados a reconhecer. Mais uma vez, como disse Jung, “A experiência
do Eu é sempre uma derrota para o ego. ” Ao descrever sua descida ao seu
inconsciente na segunda década deste século, Jung nos conta como foi
repetidamente forçado a dizer: “Eis outra coisa que você não sabia a respeito
de si mesmo”. Mas a partir dessa amarga erva, muita consciência evolui.
Através
do sofrimento e da perda, da dor e da traição somos puxados para baixo, e
possivelmente através, em direção a um Weltanschauung
mais amplo. Devin, por exemplo, parecia preso no emaranhado da dor e da perda
da esposa. Mas a dessuetude e desorientação desse período desproporcional com
relação à sua perda. Ao trabalhar a experiência, ele veio a perceber que ele
estava perdido, chorando sua vida não vivida, traída desde a infância por ele
sempre viver o plano de outra pessoa. Somente sofrendo durante esses dois
terríveis anos ele pôde finalmente chegar ao início de sua própria jornada.
A
mensagem da perda, da dor e da traição é que não podemos nos agarrar a nada,
não podemos ter ninguém ou nada como certo, não podemos evitar a dor aguda. Mas
o que subsiste é o convite à consciência. O que é constante em meio à inconstância
são as intimações à individuação. Não somos nem nosso ponto de origem nem nossa
meta; o primeiro há muito já passou, a última avança eternamente enquanto
avançamos. Nós somos a própria jornada. A perda, a dor e a traição não são
apenas lugares sombrios que precisamos de má vontade visitar; eles são
fundamentais para o amadurecimento da consciência. Eles são tão parte da
jornada quanto os lugares onde vemos um intervalo e queremos permanecer. O
grande ritmo do ganho e da perda está fora do nosso controle; o que continua
dentro do nosso controle é a atitude de estarmos dispostos a descobrir até nas
mais amargas perdas o que permanece para ser vivido.
Hollis, James. A traição. In: Os Pantanais
da alma - p. 62-68. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2011.
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