Hoje quero estar com vocês nesta conversa de uma maneira muito pessoal,
quase como se fosse uma confidência, o único modo que vejo para falar de coisas
tão significativas para mim. Vou lhes contar uma história. É uma história que
fala das histórias dos nossos desejos, dos nossos sonhos. Não dos sonhos que
temos dormindo, mas daqueles que construímos quando andamos pela praia, quando
estamos sozinhos, quando, na cama, esperamos o sono chegar, nos momentos de
recolhimento. Nessas horas começamos a criar histórias. Elas expressam os
desejos do nosso coração.
Falar em desejos me faz recordar uma coisa. Quando me perguntavam o que
eu mais desejava na vida, a resposta mais verdadeira que eu tinha era: “Que os
meus sonhos se realizem”.
Sonhamos com coisas muito próximas, pequenas - por exemplo, o fim de
semana, ou a viagem que desejamos -, mas sonhamos também com aquelas coisas que
parecem muito grandes e mesmo distantes.
Entre os grandes sonhos que já tive havia aquele de criar um mundo
melhor, mais bonito. Nas conversas com meus amigos víamos o mundo ameaçado, e o
nosso sonho era salvar o mundo, como naqueles contos em que o príncipe, depois
de muitas aventuras e dificuldades, salva a princesa.
Em nossos sonhos, vivemos todos os tipos de sensações: algumas estranhas,
outras gostosas, e até um certo medo, que aparece quando a realização do sonho
se aproxima.
Sentimos facilidade para contar certos sonhos, mas há outros que não
queremos contar. Estes parecem tão nossos, tão de dentro de nós, que, mesmo
sendo tão bonitos, ou talvez por isso mesmo, temos medo ou vergonha de contar
para os outros. Os sonhos de amor talvez sejam os mais profundos, mais
curtidos; chegam a assustar e são guardados em segredo. O tema do amor não se
limita a um sonho isolado; ele entra em quase todos os sonhos. Uma pitadinha de
amor torna mais saborosas as fantasias.
Há sonhos tão gostosos, tão
bons, pelos quais nos apaixonamos. Eles se tornam cada vez mais preciosos,
tesouros escondidos.
Se os sonhos são bonitos, por
que os escondemos, por que tanta vergonha de falar dos sonhos? Levei muito
tempo para compreender o porquê disso: é que quando falamos, quando mostramos
nosso sonho, nós nos damos conta de que, embora já convivamos com ele há muito
tempo, ele parece algo extremamente frágil. Quanto mais importante é o sonho,
mais medo de contar. Parece que se o outro não o entender, se o outro ficar
longe do meu sonho, ele vai desmoronar.
Os sonhos de amor são muito
sensíveis. Quando me apaixonava por uma menina, começava a inventar histórias.
Sonhava com ela numa praia maravilhosa, passeando de barco, andando pelas
montanhas. Eu me sentia realizado dentro do meu sonho.
Ela era a menina dos meus sonhos, com quem eu vivia todas as aventuras.
Eu era herói e salvava minha amada dos perigos.
Nas histórias que sonhava, eu
havia encontrado o melhor de mim. Lá eu colocava tudo que podia imaginar de
mais bonito, de mais rico.
Na hora de ir conversar com a
menina, porém, no momento em que estava na beirinha de passar para a realidade,
tudo se complicava. A cabeça ficava em branco, a boca secava, sumiam os
assuntos, eu tremia, sentia vergonha, pânico, porque teria de contar para ela
um pouco do meu sonho, teria de lhe dizer o quando ela era importante para mim
dentro dos meus sonhos.
Se eu era o herói, ela era a
heroína e o que acontecia no meu sonho se dava porque eu estava muito ligado a
ela. Ela tinha disparado dentro de mim essa vontade, essa capacidade de criar
histórias e de me envolver nessas histórias que são os nossos sonhos.
Eu tinha também um sonho ruim.
Era um pesadelo: a menina não iria me entender, não estaria ligada em mim. Aí,
eu sentia medo e percebia que meu sonho, que me fazia tão forte, também me
fazia muito fraco. O sonho me fazia ficar enorme dentro dele e pequeno na
realidade.
Quando chegava perto da menina
dos meus sonhos, eu ia diminuindo, quase virava o Pequeno Polegar. Outra
sensação vinha junto: ela ficava enorme, tão poderosa como se fosse a dona dos
meus sonhos, como se ela tivesse ganho toda a força que estava neles. Nas mãos dela,
no entendimento dela, na aceitação dela ficavam pendurados todos os meus
sonhos. Eu estava na dependência de ela dizer um sim ou um não, entender o que
eu estava falando ou rir de mim.
Vocês não imaginam como eu tinha
medo de que a menina dos meus sonhos risse deles. Se ela desse risada dos meus
sonhos, e esse era o meu pesadelo, tudo aquilo que eu tinha de mais bonito, de
mais forte, de maior dentro de mim, e que eu havia colocado dentro do sonho,
iria virar fumaça. Parecia que, num passe de mágica, como se fosse uma bruxa,
essa menina poderia fazer tudo desaparecer.
Se isso acontecesse, eu ficaria
vazio. Sobrariam para mim só as coisas que eu não tinha colocado no sonho, as
coisas feias, pequenas, quebradas, pois as bonitas teriam desaparecido. Sobraria
só o lixo, o resto. Meu maior medo era porque, se a menina dos meus sonhos
risse deles, ela os tornaria ridículos. Eu mesmo ficaria com vergonha de tê-los
sonhado, das minhas histórias, de tudo o que eu tinha de melhor. Imaginem então
a vergonha que eu teria do pior.
Compreendi o quanto era preciso
que ela contribuísse, que pelo menos entendesse o que estava no meu sonho;
parecia que minha relação com meus sonhos passava por ela, que dependia da
aceitação, da compreensão, do envolvimento dela. Mesmo que essa menina não
pudesse corresponder àquilo que eu tinha sonhado, que ela não me amasse, não me
admirasse como eu tinha imaginado no meu sonho, mesmo que eu tivesse de me
decepcionar, não seria tão difícil, tão assustador quanto se ela
ridicularizasse meus sonhos.
Percebi que meus sonhos poderiam
ser destruídos de uma hora para outra. O que tinha sido fonte de prazer, de
realização, de entusiasmo, poderia se evaporar e se transformar numa fonte de
vergonha. Por isso, eu tinha medo, vergonha de ficar tão pequenininho perto de
uma pessoa que tinha ficado tão grande.
Esses eram meus medos. Mas,
enfim, uma hora eu conseguia conversar com a menina. E a menina dos meus sonhos
correspondia, também estava ligada em mim, também havia sonhado comigo, e eu
era personagem das histórias dela, como ela era das minhas.
Assim, eu achava que toda a
felicidade do mundo tinha entrado para meu sonho, como se a realidade fizesse
parte dele, como se meu sonho não fosse uma coisa frágil dentro de um mundo
forte; o mundo era parte do meu sonho.
Nesse momento eu me sentia
possuidor de toda a força que meu sonho havia despertado, anunciado nas
histórias que eu inventara, e me sentia herói sem ter feito nada. Eu era o
herói dos meus sonhos, e eles tinham podido chegar à realidade pelas mãos, pela
concordância, pela parceria da menina dos meus sonhos.
Começava o namoro, uma grande
curtição, uma história que não era só sonhada, que também era real. Tudo ia bem
até que uma sensação engraçada começou a surgir: parecia que eu gostava mais
dela quando ela estava longe.
Quando ela estava longe, eu
sonhava com ela. Estando perto, o sonho ficava meio de lado, parecia que as
coisas não podiam ser tão bonitas como no sonho. Era meio esquisito, eu curtia
mais os momentos da despedida, da separação.
Que estaria acontecendo?
Começava a duvidar se gostava mesmo dela. Ficava com medo de sonhar, porque
parecia que meu sonho me levava para longe da menina dos meus sonhos, como um
traidor brigando com aquilo que no começo ele tinha dito que desejava, que era
namorar a menina dos meus sonhos.
Nesse ponto o sonho começava a
se desmanchar. Eu já não sabia se gostava dela, porque ela não era mais a
menina dos meus sonhos. Agora ela tinha um nome, era Maria, era Joana, era
Aninha, era Roberta, ela era uma pessoa real, a pessoa real que tinha desbancado
a menina dos meus sonhos, e eu tinha saudade dela.
Às vezes eu via essa mesma coisa acontecer com a menina dos meus sonhos.
Ficava aflito ao sentir que ela se afastava, não estava mais tão envolvida
comigo.
Foi assim mais de uma vez, e eu
comecei a pensar: “Será que o amor só é gostoso quando é novo e depois perde a
graça?”. Passei também a achar que meus sonhos eram perigosos, pois eles podiam
esvaziar aquilo que minha realidade permitia que eu vivesse.
Percebi outra coisa ainda. Meu
sonho se desmanchava exatamente porque eu tinha tido a sorte de realizá-lo; mas
o sonho realizado não era tão bonito como o sonhado. Esse sonho aos poucos
morria.
Em outras ocasiões, as coisas se
passavam de outro jeito. Quando eu me aproximava da menina dos meus sonhos para
lhe falar dos sonhos que tinha sonhado, da minha paixão, ela ficava
constrangida, meio assustada; sabia que aquilo não tinha nada a ver, ela estava
ligada em outra pessoa.
Aí, então, eu pensava na
sensação de vergonha que teria diante daquele que era o herói dos sonhos da
menina dos meus sonhos. Se ela estava ligada nele, com certeza ele era muito
maior que eu, pois senão ela estaria ligada em mim e não no outro.
Era uma tristeza quando o sonho
acabava.
Era muito mais triste, porém,
quando a menina dos meus sonhos não entendia nada do que eu estava dizendo,
quando ela achava engraçado, quando olhava para mim como se eu fosse um bicho
estranho. Além de não me amar, ela
achava ridículos os meus sonhos. Essa era a pior situação de todas, a mais
doída. Esse sonho instantaneamente morria.
No momento em que o sonho
morria, eu vivia uma profunda solidão. Eram inúteis o amor dos outros, a
presença dos outros. Eu estava vazio, um buraco, sem ter como responder ao
interesse, ao amor da família, dos amigos. Isso porque a menina dos meus sonhos
tinha se apoderado de tudo aquilo que eu tinha de bom, de tudo aquilo que eu
achava que sabia fazer com o amor das pessoas.
Mais tarde, descobri que não são
só os sonhos de amor que, ao morrerem, nos deixam sós. Toda vez que temos um
sonho muito precioso, muito curtido, no qual escrevemos muitas histórias, e
esse sonho morre, nós nos sentimos solitários.
Em conversas com as pessoas,
percebi que elas, frequentemente, sentiam que os sonhos atrapalhavam suas
vidas. Quando contava algum sonho da minha profissão, dos filhos que eu queria
ter um dia, da realização de uma família, de um grupo de amigos, elas me
diziam: “Você é um bobo que fica fora da realidade; o mundo não é assim, a
realidade é muito diferente”.
Quando as pessoas falavam assim,
quando achavam ridículos os meus sonhos, eles eram destruídos. Eu me sentia
meio encurralado, como se precisasse concordar com elas. De fato, meus sonhos
não eram a realidade; meus sonhos eram meus sonhos, eram o meu desejo e não a
realidade do mundo.
Nesses momentos, eu me encolhia
todo e largava dos meus sonhos, até que um dia passei a pensar: “Por que essa
pessoa tem raiva dos meus sonhos? Por que ela quer que eu pare de sonhar? Por
que é tão agressiva comigo quando converso com ela e chego perto dos meus
sonhos?”.
Então me dei conta de que,
muitas vezes, essas pessoas também já tinham sonhado. Algumas diziam: “Quando
eu era adolescente, tive muitos sonhos, mas a vida me mostrou que a realidade é
outra”.
Compreendi que elas gostavam de
mim, não queriam me ferir, mas feriam. Elas tinham ficado presas em seus sonhos
mortos. Ainda estavam tão
machucadas com a morte de seus sonhos que ficavam aflitas de me ver sonhando,
pois achavam que eu iria sofrer.
É verdade, podemos sofrer por
causa dos sonhos, mas isso não é necessariamente ruim, embora seja triste. A
morte do sonho não precisa ser uma ferida que não feche mais.
Tive a impressão de que aquelas
pessoas carregavam cadáveres de seus mortos pela vida afora. Isso as deixava
rancorosas, céticas. Elas tinham raiva dos meus sonhos e de terem, elas mesmas,
também sonhado.
Elas não tinham conseguido
enterrar seus sonhos mortos. Oprimidas pelos sonhos mortos, queriam que os
sonhos desaparecessem. Queriam que não existisse sonho, que nem elas nem
ninguém mais sonhasse, que as pessoas se tornassem realistas, práticas,
pés-no-chão, e assim ficassem secas, duras. Porque são nossos sonhos que nos
fazem sensíveis, que nos abrem para o cuidado dos outros, das coisas e até de
nós mesmos.
Nos sonhos que
eu tinha com minha profissão havia histórias de cuidar das pessoas que sofriam,
que viviam coisas que eu vivia: momentos de solidão, de frio, de escuridão, de
angústia. Eu gostava de sonhar porque poderia estar perto dessas pessoas, como
eu gostaria que estivesse alguém perto de mim nesses momentos.
Aquelas pessoas
que tiveram a infelicidade de ficar prisioneiras dos sonhos mortos tinham se tornado amargas. Numa certa época,
cheguei a pensar que elas estavam com a razão, que sonhar era perigoso,
machucava.
Depois descobri que, além das pessoas raivosas, havia aquelas que se
esqueciam dos seus sonhos mortos. Quando lhes falava dos meus sonhos, elas
ouviam, sorriam, e eu percebia uma certa nostalgia em seus sorrisos, como se
elas tivessem uma pequena saudade daqueles sonhos. Diziam para eu aproveitar,
curtir bastante o meu sonho, porque, aos poucos, os sonhos iriam embora. Elas
não tinham raiva. Elas tinham o esquecimento dos sonhos mortos, tinham fugido
deles.
Isso eu conhecia bem! Todas as vezes que um sonho meu morria, eu queria
fugir dos meus sonhos, principalmente quando eles morriam no ridículo, quando
eu tinha vergonha de ter sonhado. Durante anos não falei mais com ninguém sobre
meus sonhos, mesmo quando eles já eram muito antigos. Queria esquecer, assim eu
tinha a impressão de ficar livre deles.
O poder esquecer
os sonhos me deixou perplexo. Como era possível que algo tão importante como
alguns sonhos foram para mim, pelos quais eu tinha estado disposto a morrer -
pois em meus sonhos de salvar o mundo, de mudar a realidade, em alguns momentos
eu era capaz de de dar a vida pelo meu sonho - pudesse ser esquecido? Se eu
podia esquecer, passar adiante e simplesmente deixar meus sonhos mortos virarem
nada, era porque, talvez, eles não fossem tão importantes.
Nesse tempo, fiquei muito assustado e tive dificuldade de sonhar, porque
parecia que meus sonhos eram um engano. As pessoas que esquecem seus sonhos os
transformam, pouco a pouco, em mentiras. Mas o sonho não é mentira. Quando
estou sonhando, ele é mais verdadeiro que tudo o que está à minha volta, ele é
minha verdade, porque, lá no fundo, nós somos muito mais os nossos sonhos que
qualquer outra coisa.
Quando nossos sonhos desabrocham e alcançam uma grande dimensão, eles
contam tudo o que temos de melhor. Eles contam de nós. Então, se os sonhos são
um engano, nós também somos um engano, e a vida é toda um faz-de-conta.
Demorei a perceber que as pessoas que esqueciam seus sonhos me faziam
mais mal que aquelas que tinham raiva. Precisei fazer esforço para descobrir
que meus sonhos não eram mentira nem uma negação da realidade. Eles eram, ao
contrário, um instrumento que eu tinha, talvez o maior instrumento que eu tinha
e tenho para fazer a realidade se desdobrar, desabrochar em coisas que ela
ainda não realizou. Para isso eu tinha de encontrar uma verdade nos meus sonhos
mortos. Nos sonhos vivos, a verdade não está em questão. Mas como ficam meus
sonhos mortos?
Descobri um terceiro tipo de
gente, além dos raivosos e dos esquecidos. Havia também os teimosos. Esses
haviam sonhado, mas o sonho tinha morrido em qualquer circunstância. Eles
tinham enterrado seu sonho, mas se negavam a aceitar que o sonho morto fosse coisa
nenhuma, um nada, que tivesse sido em vão.
Vi que os teimosos não eram uns sonhadores fora da realidade, eles não
fugiam dela escondendo-se nos seus sonhos. Eram pessoas que, na morte de um
sonho, eram capazes de voltar e olhar o que estava no sonho, e lá encontravam
coisas incríveis. Comecei a aprender com elas.
Aprendi a olhar para os sonhos que tinha vontade de esquecer, que tinha
raiva de ter sonhado, e a perguntar: o que estava lá no sonho? Foi assim que
consegui voltar a um sonho antigo, que, ao acabar, tinha me deixado esvaziado
diante de uma menina que me fez sentir ridículo.
Revi aquele pequenininho, aquele bobalhão que eu tinha me sentido naquela
hora, preso diante dela, tão livre, tão forte! Voltei a olhar meu sonho e lá eu
vi que a força dela era a força do meu sonho. Compreendi que quando ela riu de
mim, estava me contando que ela não era a personagem do meu sonho que eu pensei
que fosse.
Vi que a força que meu sonho dava para a menina era um pouco daquilo que
eu podia ser. O que estava no meu sonho era a minha força, a minha
possibilidade, a minha energia de ser.
Meu sonho tinha morrido, mas a força que estava nele continuava, sem se
mostrar, meio escondida. Foi isso que os teimosos me ensinaram: os sonhos
morrem, a força deles, não; ela apenas se esconde, e podemos trazê-la de volta.
O que há por trás dos sonhos? Quando comecei a estudar Psicologia,
deparei-me com essa pergunta. Algumas pessoas insinuavam que, por trás dos
sonhos, havia sempre algo suspeito.
Fui olhar por trás dos meus sonhos e o que vi foi o desejo imenso de ser
feliz. Todos os meus sonhos têm essa marca: o desejo de me realizar, de me
sentir bem, completo. Percebi também que, nos meus sonhos, o desejo de ser
feliz sempre aparece com a felicidade dos outros. Nunca tive um sonho de ser
feliz sozinho. No mínimo, havia a menina dos meus sonhos sendo feliz comigo.
Havia as pessoas em volta, felizes por me verem feliz, por serem objeto do meu
cuidado, com a força da minha felicidade.
Quando eu sonhava com a menina
dos meus sonhos, eu andava por lugares bonitos: pelos mares, pelos campos,
pelas montanhas. Andava a cavalo, de barco, de carro; vivia aventuras. E o
mundo que estava lá, a praia, o mar, o barco, o cavalo, o campo, as árvores,
enfim, tudo era feliz dentro do meu sonho.
Meu sonho, que é basicamente ser
feliz, é o mesmo desejo de que as pessoas sejam felizes comigo, de que as
coisas sejam plenas comigo. É isso que está atrás dos sonhos, dos meus e dos da
maioria das pessoas. Não importa se é um sonho do programa de fim de semana, se
é um sonho de férias, se é um grande sonho de amor, se é o sonho de uma
profissão ou de um projeto de mudar o mundo.
E quando um sonho morre? Os
teimosos me ensinaram. Volte lá, olhe para o sonho, veja o que havia por trás,
o que estava junto, os detalhes do sonho que morreu. Repare bem na força que
havia feito o sonho nascer, que o sustentou e que agora está escondida; e mais,
aproxime-se do esconderijo da força dos sonhos; e lá, onde essa força se
esconde, enterre seu sonho que morreu.
Uma vez, lendo livros de Filosofia, encontrei um filósofo que, ao pensar
sobre as coisas, sobre a vida, poeticamente nos oferece a imagem de como
crescem as árvores no campo: em alguns momentos é como se o crescimento se
concentrasse nas raízes; elas mergulham numa realidade sombria, apertada, fria,
escura; a árvore se prepara para que em seguida apareçam novos galhos em sua
copa. É assim que as árvores crescem, ora, aprofundando as raízes na terra
escura, ora desabrochando a copa à luz do sol na direção dos céus.¹ E eu pensei
que também é assim que as pessoas crescem.
Na hora em que li isso, lembrei-me daquilo que os teimosos tinham me
falado: se o seu sonho morrer, enterre-o e guarde só a força do seu sonho, pois
os sonhos enterrados fazem com que as raízes cresçam no escuro e lá se
expandam. Dessa maneira formam uma base para que novos sonhos possam se abrir,
como a copa das árvores que desabrocham na liberdade do céu, na luz e no calor
do sol.
Quando enterramos um sonho e
guardamos a força do sonhar, nesse momento nos preparamos, mantemos essa força
para o momento seguinte. Então os sonhos renascem, e outras histórias
recomeçam. Os sonhos antigos não foram esquecidos; eles estão lá na força
escondida dos nossos sonhos novos.
Um dia, na praia, numa dessas horas em que tudo está bem, tudo em ordem
na vida, comecei a me sentir triste. Era uma tristeza quente, gostosa de ser
sentida, que aumentou quando fui assistir ao pôr-do-sol. Vinha com ela um
carinho por tudo, uma vontade de chorar. Esses momentos são muito bem-vindos:
eu me sinto profundamente recolhido e, ao mesmo tempo, muito perto das coisas,
do que está em volta, de qualquer florzinha que nasce na areia - de uma coisa
tão árida, uma flor tão viva. Era uma nostalgia de coisa nenhuma.
Quis saber de que eu estava com saudade e o porquê daquela sensação de
carinho. E aí reencontrei, nessa ocasião, os meus sonhos mortos.
Foi como se eu olhasse para a história da minha vida, não a que se
realizou, mas para a história dos sonhos que eu tinha sonhado ao longo dela.
Era deles que eu tinha saudade, e era por eles que eu sentia carinho - esses
sonhos que tinham morrido, mas que tinham representado, no momento em que
viveram, a força do meu sonhar, essa força que, de uma certa maneira,
sustenta-me no meu trabalho, nas minhas relações, na minha crença no mundo, na
minha vontade de buscar, no meu desejo de alcançar coisas, de realizar uma
tarefa, de cuidar do que está ao meu alcance.
Eram sonhos mortos, mas que foram meus e continuam meus porque me lembro
deles. Então, recordei-me da imagem da árvore com suas raízes. As grandes
árvores derrubam suas flores exatamente ali, onde suas raízes se enterram, como
alguém que num momento de saudade coloca flores num túmulo. Ali é o esconderijo
de uma força. É essa força que agora sustenta toda a beleza da copa que se
mostra. Nessa hora me senti como se fosse uma árvore, enraizada nos meus sonhos
mortos, despejando sobre esses sonhos as flores dos novos sonhos, estes que
agora estão vivos e que me enchem de energia, de vontade de fazer as coisas:
uma homenagem dos meus sonhos vivos aos meus sonhos mortos.
Neste momento de suas vidas, com certeza, vocês estão mergulhados em seus
sonhos. “Que meus sonhos se realizem”, é o que eu pensava quando me perguntavam
qual era meu maior desejo. Talvez o mesmo aconteça com vocês. Por isso, quando,
há um mês, fui convidado para esta conversa, senti que era disso que eu queria
falar. Comecei a sonhar com o que falaria hoje, e meu sonho era poder recordar
com vocês meus sonhos mortos. Desejava também que soubessem que em suas vidas,
provavelmente, vocês encontrarão, ao revelarem seus sonhos para alguém, pessoas
como as que eu encontrei: as raivosas, as esquecidas; mas aparecerão também as
teimosas.
Em todas as situações que tenho vivido, em nenhuma ocasião pude perceber,
pelo menos até hoje, que os teimosos sejam menos felizes que os raivosos ou os
esquecidos. Ao contrário, tenho a sensação de que os teimosos, por mais que
sofram, que quebrem a cara, que estejam a toda hora tomando rasteira da realidade,
são mais felizes.
Eu gostaria que vocês se tornassem teimosos. Uma teimosia que aceita a
morte dos sonhos - de certo modo isso é essencial para crescer -, mas
reencontra no enterro de cada sonho a força do sonhar. Queria que estivessem
dispostas a sonhar de novo, de novo e de novo, e a permitir que os sonhos novos
viessem, como a seiva das árvores, buscar nesse âmbito dos sonhos mortos a
energia com que os novos sonhos estão sempre prontos a nascer.
Se vocês se tornarem esse tipo de teimosos, terão maior chance de ser
felizes. Se forem felizes, o mais possível, então serão honestos com o sonho de
vocês, pois, afinal de contas, por trás de todo sonho há o desejo de ser feliz.
Essa teimosia, essa possibilidade de lutar pelos sonhos, que deixa que
eles morram e nasçam, é um segredo, mas não deveria ser, deveria se espalhar e
ser dito para todo mundo.
Isso é muito importante para que sejamos honestos para que cumpramos do
melhor modo possível aquilo que em nossos sonhos se anunciou, aquilo que
prometemos para nós mesmos: tentar ser feliz sabendo que essa felicidade é
sempre, tal como aparece em todos os nossos sonhos, uma felicidade nossa com os
outros.
Essa é a história dos desejos que sonhei contar aqui. É a história que eu
trouxe de volta, que tem uma força muito grande, que é uma coisa que não deve
ser segredo, embora eu sempre achasse importante que ela fosse contada como um
segredo muito íntimo, como quando se fala baixinho daquelas coisas que vêm do
fundo da gente para pessoas muito próximas. Nesse meu sonho do último mês -
poder contar essa história para vocês -, eu tinha medo de me sentir esvaziado
ao realizá-lo, de não encontrar um interlocutor com quem dividir isto, um dos
meus mais preciosos segredos. Ao mesmo tempo, tinha também um grande desejo de lhes
dizer essas coisas. Sinto agora que, com vocês, pude realizar esse meu sonho.
Pompeia, João
Augusto. História dos Desejos. In: Na presença do sentido: uma aproximação
fenomenológica a questões existenciais básica / João Augusto Pompeia e Bilê
Tati Sapienza - p. 31-50. 2 ed., 2 reimpr. - São Paulo: EDUC; ABD, 2014.
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