terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Na presença do sentido, uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas

"Vamos esclarecer o nosso emprego da palavra sentido, visto que ela é sempre discutível, principalmente quando queremos explicá-la através da linguagem do conhecimento. Usamos essa palavra aqui em sua acepção mais simples. Trata-se daquele sentido que, na hora em que falta, todos nós sabemos de que se trata. É o sentido primário, fundamental, a que nos referimos quando perguntamos: “qual o sentido de nossas vidas? Qual o sentido de estarmos aqui?”.

Algumas vezes na vida, passamos por situações nas quais o sentido se perde. Há uma situação específica em que isso ocorre de forma drástica e intensa: o momento em que vivenciamos a morte de um sonho. Essa é uma experiência humana única, pois só os homens sonham. Referimo-nos ao sonho como perspectiva, esperança. Não só o homem é o único animal que sonha como também, uma vez tendo conquistado o direito de sonhar, transformou o sonho em seu valor mais alto.

A imagem do herói , em todas as épocas e culturas, é sempre a imagem daquele que colocou o sonho acima de tudo, até da conservação da vida e da preservação da espécie.

Numa belíssima cena do filme 2001, uma odisséia no espaço, um computador ultrapassa suas funções e começa a enlouquecer. Impulsionado por uma grande aspiração, pergunta ao cosmonauta: “Será que eu posso sonhar?”. Porque em sua perfeição técnica faltava o sonho.

Mas o sonho também morre, e quando isso acontece ficamos provisoriamente privados de sentido. Quando tudo aquilo que esperamos, a que nos dedicamos, em nome do que nos organizamos, morre, nossa vida morre também. Nesse momento, vivemos duas experiências interligadas. Ao mesmo tempo em que percebemos grande lucidez e clareza, esta é absolutamente incompatível com a ação, porque não há motivo para fazer coisa alguma.

A morte do sonho traz uma experiência muito forte de solidão. Ao conversarmos com pessoas que vivem o drama de uma solidão muito intensa, em geral, deparamos com um sonho que morreu. Para tais pessoas, o afeto, a preocupação, a proximidade dos outros aprofundam ainda mais sua solidão. É como se o amor e a preocupação dos outros ao redor fossem absurdos e vazios, porque, sem o sonho, nada se articula, o sentido é negado e não se tem como acolher e muito menos retribuir carinho.

Muitas vezes a pessoa carrega em si um sonho que morreu, e ela não consegue abandonar e enterrar esse sonho, pois isso é assustador. É assustador porque a desilusão com um amor ou um ideal dá a impressão de que jamais ela poderá amar ou ter ideais de novo. Então, ela se agarra ao sonho morto, e este a escraviza na condição de ausência de sentido. É muito difícil nos aproximarmos da pessoa que vive esse momento.

O fim de um sonho é uma das formas de perda do sentido. Essa perda traz não apenas dor. A pessoa pode sentir que perdeu também exatamente o que fazia sua existência ser digna de ser vivida. É como se ela se sentisse ferida em sua dignidade. Desaparece o que tinha importância, e , nessas horas em que um sentido muito importante da vida se desarticula, o perigo é que isso arraste tudo o mais, num movimento que tende a escravizar todas as coisas de qualquer significado que ainda possam ter.

Na ausência de sentido, fica difícil viver. Mas se a pessoa compreender que, embora sonhos se acabem, a possibilidade de sonhar permanece, ela poderá restabelecer um sentido.

Depois de abandonar um sonho morto, é hora de começar a sonhar de novo; é hora de começar a habitar um novo sonho.

Que é habitar um sonho?

Sabemos que somos frágeis; por isso, precisamos de um lugar para morar. Isso vai além da concretude do lugar, queremos habitar “em casa”.

Mas a necessidade de habitar ainda vai mais longe. Dotados de linguagem, percebendo significados, e capazes de sonhar, o precisar “estar-em-casa” tem uma amplitude maior.
Precisamos habitar no sentido das coisas, habitar nossos sonhos, que são os grandes articuladores de sentido.

Quem já passou pela experiência de perder o sentido sabe o que isso quer dizer: chegar em casa e não ter mais casa, só um espaço vazio.

Habitar no sentido é a possibilidade de procurarmos.

Na condição de seres que sonham e vêem seus sonhos morrerem, há uma situação muito angustiante que se manifesta na tentativa desesperada de, ao sentir que um sonho esta acabando, querer preservá-lo de qualquer jeito, acima de toda a experiência. É a tentativa de radicalizar o sonho por não admitirmos que nada o ameace. Assim, o sonho já não é algo cheio de vigor, capaz de se confrontar e de se relacionar com as coisas; tornou-se um sonho moribundo, que não queremos deixar morrer. Para não o deixarmos morrer, começamos a ser cada vez mais agressivos com relação a tudo que o ameace. Já não habitamos mais o sonho, passamos a defendê-lo e nos tornamos escravos daquilo que esperamos a qualquer custo. Nisso, perdemos a liberdade.

A pessoa nessa situação não se dá conta de que, assim como é preciso habitar no sentido, como sonhadores, por outro lado, estamos destinados ao desenvolvimento, não podemos ficar parados lá atrás.

Nós temos de nos desenvolver. O desenvolvimento não é uma opção nossa, assim como não o são o sentido e o habitar. Precisamos nos des-envolver, des-cobrir nós mesmos e o mundo. Isso faz parte do nosso destino, entendido não como algo previamente definido e demarcado, como uma obrigatoriedade ou regido por uma causalidade férrea. Empregamos a palavra destino da mesma forma como a encontramos na estação rodoviária ou no aeroporto: “Atenção passageiros com destino a...”.

O que define o passageiro é o seu destino. Dessa mesma forma, também somos destinados a nos desenvolver na direção do horizonte para o qual caminhamos.

Somos destinados, mas podemos nos perder: podemos perder nossa morada no sentido, não saber o que fazer com a liberdade, sentir dificuldade para prosseguir em nossa direção. Nesses momentos é preciso cuidado...Talvez isso justifique termos dito, no início, que procura , é pró-cura, é para cuidar.

Estamos chegando a poder dizer que é a procura, via poiesis, pela verdade que liberta para a dedicação ao sentido.

Somos todos lançados nesse processo que é a existência, pois recebemos a vida à revelia de qualquer decisão própria. Podemos decidir sobre possibilidades de rumos diferentes que queiramos seguir, mas há uma coisa que vale para todos nós: enquanto existimos, estamos destinados ao próprio desenvolvimento, habitando o sentido ao qual nos dedicamos na efetivação da nossa liberdade, radicada na verdade que liberta e que nós procuramos. Às vezes, perdemos esse sentido e então temos, pela via da poiesis, uma forma de reencontrá-lo."

João Augusto Pompeia e Bilê Tatit Sapienza 

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