"Vamos esclarecer o nosso
emprego da palavra sentido, visto que ela é sempre discutível,
principalmente quando queremos explicá-la através da linguagem do
conhecimento. Usamos essa palavra aqui em sua acepção mais simples.
Trata-se daquele sentido que, na hora em que falta, todos nós sabemos de
que se trata. É o sentido primário, fundamental, a que nos referimos
quando perguntamos: “qual o sentido de nossas vidas? Qual o sentido de
estarmos aqui?”.
Algumas
vezes na vida, passamos por situações nas quais o sentido se perde. Há
uma situação específica em que isso ocorre de forma drástica e intensa: o
momento em que vivenciamos a morte de um sonho. Essa é uma experiência
humana única, pois só os homens sonham. Referimo-nos ao sonho como
perspectiva, esperança. Não só o homem é o único animal que sonha como
também, uma vez tendo conquistado o direito de sonhar, transformou o
sonho em seu valor mais alto.
A
imagem do herói , em todas as épocas e culturas, é sempre a imagem
daquele que colocou o sonho acima de tudo, até da conservação da vida e
da preservação da espécie.
Numa
belíssima cena do filme 2001, uma odisséia no espaço, um computador
ultrapassa suas funções e começa a enlouquecer. Impulsionado por uma
grande aspiração, pergunta ao cosmonauta: “Será que eu posso sonhar?”.
Porque em sua perfeição técnica faltava o sonho.
Mas
o sonho também morre, e quando isso acontece ficamos provisoriamente
privados de sentido. Quando tudo aquilo que esperamos, a que nos
dedicamos, em nome do que nos organizamos, morre, nossa vida morre
também. Nesse momento, vivemos duas experiências interligadas. Ao mesmo
tempo em que percebemos grande lucidez e clareza, esta é absolutamente
incompatível com a ação, porque não há motivo para fazer coisa alguma.
A
morte do sonho traz uma experiência muito forte de solidão. Ao
conversarmos com pessoas que vivem o drama de uma solidão muito intensa,
em geral, deparamos com um sonho que morreu. Para tais pessoas, o
afeto, a preocupação, a proximidade dos outros aprofundam ainda mais sua
solidão. É como se o amor e a preocupação dos outros ao redor fossem
absurdos e vazios, porque, sem o sonho, nada se articula, o sentido é
negado e não se tem como acolher e muito menos retribuir carinho.
Muitas
vezes a pessoa carrega em si um sonho que morreu, e ela não consegue
abandonar e enterrar esse sonho, pois isso é assustador. É assustador
porque a desilusão com um amor ou um ideal dá a impressão de que jamais
ela poderá amar ou ter ideais de novo. Então, ela se agarra ao sonho
morto, e este a escraviza na condição de ausência de sentido. É muito
difícil nos aproximarmos da pessoa que vive esse momento.
O
fim de um sonho é uma das formas de perda do sentido. Essa perda traz
não apenas dor. A pessoa pode sentir que perdeu também exatamente o que
fazia sua existência ser digna de ser vivida. É como se ela se sentisse
ferida em sua dignidade. Desaparece o que tinha importância, e , nessas
horas em que um sentido muito importante da vida se desarticula, o
perigo é que isso arraste tudo o mais, num movimento que tende a
escravizar todas as coisas de qualquer significado que ainda possam ter.
Na
ausência de sentido, fica difícil viver. Mas se a pessoa compreender
que, embora sonhos se acabem, a possibilidade de sonhar permanece, ela
poderá restabelecer um sentido.
Depois de abandonar um sonho morto, é hora de começar a sonhar de novo; é hora de começar a habitar um novo sonho.
Que é habitar um sonho?
Sabemos
que somos frágeis; por isso, precisamos de um lugar para morar. Isso
vai além da concretude do lugar, queremos habitar “em casa”.
Mas
a necessidade de habitar ainda vai mais longe. Dotados de linguagem,
percebendo significados, e capazes de sonhar, o precisar “estar-em-casa”
tem uma amplitude maior.
Precisamos habitar no sentido das coisas, habitar nossos sonhos, que são os grandes articuladores de sentido.
Quem
já passou pela experiência de perder o sentido sabe o que isso quer
dizer: chegar em casa e não ter mais casa, só um espaço vazio.
Habitar no sentido é a possibilidade de procurarmos.
Na
condição de seres que sonham e vêem seus sonhos morrerem, há uma
situação muito angustiante que se manifesta na tentativa desesperada de,
ao sentir que um sonho esta acabando, querer preservá-lo de qualquer
jeito, acima de toda a experiência. É a tentativa de radicalizar o sonho
por não admitirmos que nada o ameace. Assim, o sonho já não é algo
cheio de vigor, capaz de se confrontar e de se relacionar com as coisas;
tornou-se um sonho moribundo, que não queremos deixar morrer. Para não o
deixarmos morrer, começamos a ser cada vez mais agressivos com relação a
tudo que o ameace. Já não habitamos mais o sonho, passamos a defendê-lo
e nos tornamos escravos daquilo que esperamos a qualquer custo. Nisso,
perdemos a liberdade.
A
pessoa nessa situação não se dá conta de que, assim como é preciso
habitar no sentido, como sonhadores, por outro lado, estamos destinados
ao desenvolvimento, não podemos ficar parados lá atrás.
Nós
temos de nos desenvolver. O desenvolvimento não é uma opção nossa,
assim como não o são o sentido e o habitar. Precisamos nos des-envolver,
des-cobrir nós mesmos e o mundo. Isso faz parte do nosso destino,
entendido não como algo previamente definido e demarcado, como uma
obrigatoriedade ou regido por uma causalidade férrea. Empregamos a
palavra destino da mesma forma como a encontramos na estação rodoviária
ou no aeroporto: “Atenção passageiros com destino a...”.
O
que define o passageiro é o seu destino. Dessa mesma forma, também
somos destinados a nos desenvolver na direção do horizonte para o qual
caminhamos.
Somos
destinados, mas podemos nos perder: podemos perder nossa morada no
sentido, não saber o que fazer com a liberdade, sentir dificuldade para
prosseguir em nossa direção. Nesses momentos é preciso cuidado...Talvez
isso justifique termos dito, no início, que procura , é pró-cura, é para
cuidar.
Estamos chegando a poder dizer que é a procura, via poiesis, pela verdade que liberta para a dedicação ao sentido.
Somos
todos lançados nesse processo que é a existência, pois recebemos a vida
à revelia de qualquer decisão própria. Podemos decidir sobre
possibilidades de rumos diferentes que queiramos seguir, mas há uma
coisa que vale para todos nós: enquanto existimos, estamos destinados ao
próprio desenvolvimento, habitando o sentido ao qual nos dedicamos na
efetivação da nossa liberdade, radicada na verdade que liberta e que nós
procuramos. Às vezes, perdemos esse sentido e então temos, pela via da
poiesis, uma forma de reencontrá-lo."
João Augusto Pompeia e Bilê Tatit Sapienza
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