quinta-feira, 30 de julho de 2020

Intimidade

"Esqueça sexo e beijo na boca. É incrível como é possível fazer essas duas coisas sem qualquer intimidade. Passar algumas horas pelados, beijando e transando não é o mesmo que tornar-se íntimo de alguém.

A intimidade, para começar, nem é algo físico. Pode até se expressar fisicamente, mas nunca começa por aí. A intimidade mora na alma, na troca de olhares, no silêncio das conversas que dispensam palavras.

Acontece no encontro do que há de mais profundo em mim com o que há de mais profundo em você. E isso, muitas vezes, acontece sem sexo.

Intimidade é o espaço onde posso existir como sou, com minhas imperfeições, virtudes, posições, pensamentos e vícios. Intimidade é onde posso existir na medida em que o outro me abriga.

É poder dizer ao outro aquilo que calo para os demais. De todas as intimidades possíveis entre duas pessoas, nenhuma é mais profunda do que a sinceridade.

Intimidade é poder dizer a verdade. Não a verdade absoluta, porque ela não existe, mas poder dizer as minhas verdades. É ter a leveza de um lugar seguro, distante dos juízes que estão sempre prontos para me julgar.

Intimidade é raiz que alcança o mais profundo da terra, firmando relacionamentos em solo estável, preparados para enfrentar os vendavais. É lugar onde as mentiras não precisam de justificativas e as verdades não precisam de defesa.

E isso não acontece do dia para a noite. Intimidade é construção que demanda tempo e investimento. Por isso há cada vez menos pessoas íntimas: porque a velocidade e superficialidade de tudo colocaram os relacionamentos profundos em extinção. Tudo é líquido.

A tragédia é que, sem intimidade, somos escravos da aparência, para agradar outros que também não passam de escravos. A vida sem intimidade é vazia, oca, ilhada – o tipo mais popular do momento."

*Autor desconhecido*

domingo, 14 de junho de 2020

A traição


          A traição também é uma forma de perda. O que é perdido é a inocência, a confiança e o relacionamento simples. Todos nós somos traídos de vez em quando, mesmo no nível cósmico. As suposições do ego, as fantasias pessoais de onipotência, sofrem duros golpes. (Nietzsche comentou o quão desapontados ficamos no dia em que percebemos que não éramos Deus.)
            A discrepância entre as fantasias do ego e as limitações da nossa frágil vida parece amiúde parte de uma traição cósmica, como se um pai ou uma mãe universal nos tivesse decepcionado. Como Frost tão espirituosamente observou: “Senhor, perdoa meu pequeno gracejo contigo/ E perdoarei Teu grande gracejo comigo”. E Jesus, na cruz, grita: “Meu Deus, meu Deus... por que Tu me abandonaste? ”.
            Nós queremos naturalmente uma proteção contra o mundo preocupante, contra a ambivalência e a ambiguidade, e projetamos a necessidade da criança da proteção dos pais sobre o indiferente universo. A expectativa de proteção da criança e de amor é frequentemente traída. Mesmo no lar mais benigno, os ferimentos gêmeos da dominação e do abandono são inevitáveis. Talvez nada faça gelar mais o coração dos pais do que a compreensão de que apenas por sermos nós mesmos nós ferimos nossos filhos. Desse modo, toda criança se sente traída pela qualidade humana, pelas limitações dos pais – algumas mais do que outras. Aldo Carotenuto faz o seguinte comentário:

Só podemos ser traídos por aqueles em quem confiamos. No entanto, temos de acreditar. Uma pessoa que não tenha fé e se recuse a amar por medo de ser traída, certamente estará livre desses tormentos, mas quem sabe de quantas coisas ela estará livre?
                                   
            Quanto maior essa “traição” da inocência, confiança e fé, mais provável é que a criança cresça desconfiando do mundo. A experiência da profunda traição conduz à paranoia, uma universalização de transferência da perda. Um homem de quem tratei durante um breve espaço de tempo, lembrou-se do dia em que sua mãe o abandonou para sempre. Embora sua esposa fosse amorosa e dedicada, ele não conseguia confiar nela, segui-a por toda a parte, insistia em que ela se submetesse a testes de polígrafo para afirmar sua lealdade, e via no menor dos incidentes provas de traição, que ele considerava sua sina. Apesar de ela repetidamente lhe afirmar que era fiel, ele finalmente a afastou de si, vendo na partida dela a confirmação do que sempre acreditara, ou seja, que ele fora traído para sempre.
            Com efeito, pensamentos paranoicos estão até certo ponto ocultos em nós, pois todos fomos feridos pelo cosmos, pela condição existencial, bem como por aqueles em que depositamos a nossa confiança.
            A confiança e a traição são opostos necessários. Se alguém foi traído – e quem não foi – torna-se difícil confiar. Frequentemente quando a criança foi profundamente traída através da negligência ou do abuso dos pais, mais tarde ela se liga a alguém que irá repetir a traição – um padrão chamado “formação de reação”, ou uma “profecia que se autorealiza” – ou evita a intimidade na esperança de evitar ser novamente ferida. Em ambas as estratégias, o legado do ferimento passado domina as escolhas do presente. A pessoa ainda é definida, como no caso da culpa, pelo passado. No entanto, estar em um relacionamento, investir nele com confiança, significa também pressupor a capacidade da traição. Se não confiamos, não estamos investidos da profundidade que torna possível a intimidade. Se não investimos nessa profundidade carregada de riscos, então a genuína intimidade é frustrada. O paradoxo da díade confiança/traição, portanto, é que cada uma é pressuposta pela outra. Sem confiança, não há profundidade; sem profundidade, não existe a verdadeira traição.
            À semelhança do que observamos na culpa, é extremamente difícil perdoar a traição, especialmente aquela que parece deliberada. No entanto, a capacidade de perdoar não apenas é um reconhecimento implícito da nossa capacidade de trair, como também é a única medida capaz de nos libertar dos grilhões do passado. Não vemos com frequência almas amarguradas que ainda não conseguiram perdoar o antigo cônjuge que as traiu? Elas ainda estão, através da sua escravidão ao passado, ainda casadas com o traidor, ainda são definidas e corroídas pelo ácido do ódio. Também já vi pessoas divorciadas que carregam o ódio por antigos cônjuges, não pelo que eles fizeram, e sim pelo que eles não fizeram.
            Julianne era uma Filhinha do Papai. Ela conheceu um homem que se propôs a cuidar dela. Embora ela ficasse impaciente com a liderança dele, e ele com a carência dela, ambos eram definidos por esse contrato inconsciente, ou seja, que ele seria o marido-pai e ela a filha dedicada. Quando o marido superou psicologicamente essa barganha inconsciente, realizada quando ambos estavam com vinte e poucos anos, ela ficou furiosa. Ela permaneceu infantil e petulante, sem perceber que a partida do marido era uma chamada para que ela despertasse para a idade adulta. A traição dele lhe pareceu total, imperdoável, quando, na verdade, ela tinha sido traída pela fusão pai-filha da qual ela nunca havia se separado. Não é preciso dizer que ela logo encontrou outro homem com quem pôde representar a antiga dependência. O convite para o crescimento foi recusado.
            A traição é frequentemente vivenciada como um isolamento do eu. O outro com quem contávamos, ou com relação a quem mantínhamos certas expectativas, ou com quem brincávamos uma inconsciente folie à deux tornou-se agora suspeito e nossas suposições fundamentais estão abaladas. Nesse estado alterado, um considerável crescimento torna-se possível. Podemos aprender com nossas feridas, mas se não o fizermos, nós as repetiremos em outro contexto ou nos identificaremos com elas. Assim, muitos permanecem presos ao passado, “identificados com a ferida”. Deus parece “trair” Jó, mas no final as suposições casuais de Jó sobre o universo são abaladas; ele se desloca para um novo nível de consciência e converte sua provação em uma benção desse Deus. Jesus se sente traído não apenas por Judas, mas também por seu Pai, mas no entanto, em sua aceitação final ele alcança a consumação epifânica no Gólgota.
            Naturalmente nós nos sentimos ultrajados com a traição e temos a probabilidade de tentar nos vingarmos. Mas a vingança, além de constringir em vez de expandir, nos prende ao passado. Aqueles consumidos pela vingança, por mais legitima que seja sua queixa, permanecem eternas vítimas. Eles ainda se encontram na traição original, e toda a vida que poderia ter sido deles a partir de então é frustrada. Analogamente, a pessoa pode, através de várias formas de negação, escolher permanecer inconsciente. Essa manobra, que é uma recusa de sentir a dor que a pessoa já sente, é uma resistência ao crescimento obrigado por qualquer Éden perdido, qualquer exigência de uma expansão de consciência.
            A terceira tentação da pessoa traída é generalizar a experiência, como na paranoia do homem cuja mãe o abandonou. Se ela o deixou, certamente qualquer outra mulher de quem ele gostasse faria o mesmo. Essa paranoia, por mais compreensível que possa ser a partir da estrutura dessa experiência, transforma-se em um cinismo contaminante com relação a todos os relacionamentos. A tendência de generalizar a partir de uma experiência aguda de traição mantém a pessoa no continuum que vai da suspeita e da fuga da intimidade à paranoia e à tendência de ser o bode expiatório.
            A traição nos leva em direção à individuação. Se a traição é da nossa ingenuidade existencial, somos impulsionados na direção do abraço da sabedoria maior do universo cuja dialética parece ser o apego e a perda; se a traição é da nossa dependência, somos levados a enfrentar o ponto em que ansiamos por permanecer infantis; se a traição é de um ser consciente com relação a outro, somos levados a sofrer e abraçar as polaridades que existem não apenas no traidor, como também em nós mesmos. Em todos os casos, se não permanecemos atrás, presos a recriminações, ficamos mais expandidos, completos e conscientes. Carotenuto resumiu muito bem este dilema:

A experiência da traição, traduzida em termos psicológicos, proporciona a oportunidade de vivenciarmos um dos processos mais fundamentais da vida psíquica, a integração da ambivalência, incluindo os sentimentos amor-ódio existentes em todos os relacionamentos. É preciso enfatizar novamente que essa experiência não envolve apenas aquele que geralmente leva a culpa, mas também o traído, que inconscientemente desencadeou os eventos que provocaram a traição.     

            A pílula mais amarga na traição, portanto, pode ser reconhecermos relutantemente, amiúde anos depois, que nós fizemos parte do balé conivente que com o tempo provocou a traição. Se conseguirmos engolir essa amarga pílula, teremos uma sensação bem mais ampla de controle da nossa sombra. Nem sempre iremos gostar do que seremos intimados a reconhecer. Mais uma vez, como disse Jung, “A experiência do Eu é sempre uma derrota para o ego. ” Ao descrever sua descida ao seu inconsciente na segunda década deste século, Jung nos conta como foi repetidamente forçado a dizer: “Eis outra coisa que você não sabia a respeito de si mesmo”. Mas a partir dessa amarga erva, muita consciência evolui.
            Através do sofrimento e da perda, da dor e da traição somos puxados para baixo, e possivelmente através, em direção a um Weltanschauung mais amplo. Devin, por exemplo, parecia preso no emaranhado da dor e da perda da esposa. Mas a dessuetude e desorientação desse período desproporcional com relação à sua perda. Ao trabalhar a experiência, ele veio a perceber que ele estava perdido, chorando sua vida não vivida, traída desde a infância por ele sempre viver o plano de outra pessoa. Somente sofrendo durante esses dois terríveis anos ele pôde finalmente chegar ao início de sua própria jornada.
            A mensagem da perda, da dor e da traição é que não podemos nos agarrar a nada, não podemos ter ninguém ou nada como certo, não podemos evitar a dor aguda. Mas o que subsiste é o convite à consciência. O que é constante em meio à inconstância são as intimações à individuação. Não somos nem nosso ponto de origem nem nossa meta; o primeiro há muito já passou, a última avança eternamente enquanto avançamos. Nós somos a própria jornada. A perda, a dor e a traição não são apenas lugares sombrios que precisamos de má vontade visitar; eles são fundamentais para o amadurecimento da consciência. Eles são tão parte da jornada quanto os lugares onde vemos um intervalo e queremos permanecer. O grande ritmo do ganho e da perda está fora do nosso controle; o que continua dentro do nosso controle é a atitude de estarmos dispostos a descobrir até nas mais amargas perdas o que permanece para ser vivido.


Hollis, James. A traição. In: Os Pantanais da alma - p. 62-68. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2011.


sexta-feira, 12 de junho de 2020

Se eu pudesse trincar a terra toda

XXI
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma coisa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...
7-3-1914
“O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946.
  - 45.

domingo, 7 de junho de 2020

AMOR, SEXO, CASTIDAD - Una selección de pasajes para el estudio de las enseñanzas de J. Krishnamurti


La relación es el espejo en el que nos vemos a nosotros mismos tal como somos. Toda vida es un movimiento en relación. No existe nada viviente sobre la Tierra que no esté relacionado con una cosa u otra. Aun el ermitaño, un hombre que se marcha a un paraje solitario, sigue en relación con el pasado y con aquellos que le rodean. No es posible escapar de la relación. En esa relación, que es el espejo que nos permite vernos a nosotros mismos, podemos descubrir lo que somos, nuestras reacciones, nuestros prejuicios y temores, las depresiones y ansiedades, la soledad, el dolor, la pena, la angustia. También podemos descubrir si amamos o si no hay tal cosa como el amor. Por lo tanto, examinaremos este problema de la relación, porque la relación es la base del amor.

Madras, India, 26 de diciembre de 1982


http://datelobueno.com/wp-content/uploads/2014/05/Amor-sexo-castidad.pdf

terça-feira, 26 de maio de 2020

História dos desejos


Hoje quero estar com vocês nesta conversa de uma maneira muito pessoal, quase como se fosse uma confidência, o único modo que vejo para falar de coisas tão significativas para mim. Vou lhes contar uma história. É uma história que fala das histórias dos nossos desejos, dos nossos sonhos. Não dos sonhos que temos dormindo, mas daqueles que construímos quando andamos pela praia, quando estamos sozinhos, quando, na cama, esperamos o sono chegar, nos momentos de recolhimento. Nessas horas começamos a criar histórias. Elas expressam os desejos do nosso coração.
Falar em desejos me faz recordar uma coisa. Quando me perguntavam o que eu mais desejava na vida, a resposta mais verdadeira que eu tinha era: “Que os meus sonhos se realizem”.

Sonhamos com coisas muito próximas, pequenas - por exemplo, o fim de semana, ou a viagem que desejamos -, mas sonhamos também com aquelas coisas que parecem muito grandes e mesmo distantes.
Entre os grandes sonhos que já tive havia aquele de criar um mundo melhor, mais bonito. Nas conversas com meus amigos víamos o mundo ameaçado, e o nosso sonho era salvar o mundo, como naqueles contos em que o príncipe, depois de muitas aventuras e dificuldades, salva a princesa.
Em nossos sonhos, vivemos todos os tipos de sensações: algumas estranhas, outras gostosas, e até um certo medo, que aparece quando a realização do sonho se aproxima.
Sentimos facilidade para contar certos sonhos, mas há outros que não queremos contar. Estes parecem tão nossos, tão de dentro de nós, que, mesmo sendo tão bonitos, ou talvez por isso mesmo, temos medo ou vergonha de contar para os outros. Os sonhos de amor talvez sejam os mais profundos, mais curtidos; chegam a assustar e são guardados em segredo. O tema do amor não se limita a um sonho isolado; ele entra em quase todos os sonhos. Uma pitadinha de amor torna mais saborosas as fantasias.
                Há sonhos tão gostosos, tão bons, pelos quais nos apaixonamos. Eles se tornam cada vez mais preciosos, tesouros escondidos.
             Se os sonhos são bonitos, por que os escondemos, por que tanta vergonha de falar dos sonhos? Levei muito tempo para compreender o porquê disso: é que quando falamos, quando mostramos nosso sonho, nós nos damos conta de que, embora já convivamos com ele há muito tempo, ele parece algo extremamente frágil. Quanto mais importante é o sonho, mais medo de contar. Parece que se o outro não o entender, se o outro ficar longe do meu sonho, ele vai desmoronar.
               Os sonhos de amor são muito sensíveis. Quando me apaixonava por uma menina, começava a inventar histórias. Sonhava com ela numa praia maravilhosa, passeando de barco, andando pelas montanhas. Eu me sentia realizado dentro do meu sonho.
Ela era a menina dos meus sonhos, com quem eu vivia todas as aventuras. Eu era herói e salvava minha amada dos perigos.
                Nas histórias que sonhava, eu havia encontrado o melhor de mim. Lá eu colocava tudo que podia imaginar de mais bonito, de mais rico.
                Na hora de ir conversar com a menina, porém, no momento em que estava na beirinha de passar para a realidade, tudo se complicava. A cabeça ficava em branco, a boca secava, sumiam os assuntos, eu tremia, sentia vergonha, pânico, porque teria de contar para ela um pouco do meu sonho, teria de lhe dizer o quando ela era importante para mim dentro dos meus sonhos.
                Se eu era o herói, ela era a heroína e o que acontecia no meu sonho se dava porque eu estava muito ligado a ela. Ela tinha disparado dentro de mim essa vontade, essa capacidade de criar histórias e de me envolver nessas histórias que são os nossos sonhos.
                Eu tinha também um sonho ruim. Era um pesadelo: a menina não iria me entender, não estaria ligada em mim. Aí, eu sentia medo e percebia que meu sonho, que me fazia tão forte, também me fazia muito fraco. O sonho me fazia ficar enorme dentro dele e pequeno na realidade.
              Quando chegava perto da menina dos meus sonhos, eu ia diminuindo, quase virava o Pequeno Polegar. Outra sensação vinha junto: ela ficava enorme, tão poderosa como se fosse a dona dos meus sonhos, como se ela tivesse ganho toda a força que estava neles. Nas mãos dela, no entendimento dela, na aceitação dela ficavam pendurados todos os meus sonhos. Eu estava na dependência de ela dizer um sim ou um não, entender o que eu estava falando ou rir de mim.
                Vocês não imaginam como eu tinha medo de que a menina dos meus sonhos risse deles. Se ela desse risada dos meus sonhos, e esse era o meu pesadelo, tudo aquilo que eu tinha de mais bonito, de mais forte, de maior dentro de mim, e que eu havia colocado dentro do sonho, iria virar fumaça. Parecia que, num passe de mágica, como se fosse uma bruxa, essa menina poderia fazer tudo desaparecer.
                Se isso acontecesse, eu ficaria vazio. Sobrariam para mim só as coisas que eu não tinha colocado no sonho, as coisas feias, pequenas, quebradas, pois as bonitas teriam desaparecido. Sobraria só o lixo, o resto. Meu maior medo era porque, se a menina dos meus sonhos risse deles, ela os tornaria ridículos. Eu mesmo ficaria com vergonha de tê-los sonhado, das minhas histórias, de tudo o que eu tinha de melhor. Imaginem então a  vergonha que eu teria do pior.
                Compreendi o quanto era preciso que ela contribuísse, que pelo menos entendesse o que estava no meu sonho; parecia que minha relação com meus sonhos passava por ela, que dependia da aceitação, da compreensão, do envolvimento dela. Mesmo que essa menina não pudesse corresponder àquilo que eu tinha sonhado, que ela não me amasse, não me admirasse como eu tinha imaginado no meu sonho, mesmo que eu tivesse de me decepcionar, não seria tão difícil, tão assustador quanto se ela ridicularizasse meus sonhos.
                Percebi que meus sonhos poderiam ser destruídos de uma hora para outra. O que tinha sido fonte de prazer, de realização, de entusiasmo, poderia se evaporar e se transformar numa fonte de vergonha. Por isso, eu tinha medo, vergonha de ficar tão pequenininho perto de uma pessoa que tinha ficado tão grande.            
                Esses eram meus medos. Mas, enfim, uma hora eu conseguia conversar com a menina. E a menina dos meus sonhos correspondia, também estava ligada em mim, também havia sonhado comigo, e eu era personagem das histórias dela, como ela era das minhas.
                Assim, eu achava que toda a felicidade do mundo tinha entrado para meu sonho, como se a realidade fizesse parte dele, como se meu sonho não fosse uma coisa frágil dentro de um mundo forte; o mundo era parte do meu sonho.
                Nesse momento eu me sentia possuidor de toda a força que meu sonho havia despertado, anunciado nas histórias que eu inventara, e me sentia herói sem ter feito nada. Eu era o herói dos meus sonhos, e eles tinham podido chegar à realidade pelas mãos, pela concordância, pela parceria da menina dos meus sonhos.  
              Começava o namoro, uma grande curtição, uma história que não era só sonhada, que também era real. Tudo ia bem até que uma sensação engraçada começou a surgir: parecia que eu gostava mais dela quando ela estava longe.
                Quando ela estava longe, eu sonhava com ela. Estando perto, o sonho ficava meio de lado, parecia que as coisas não podiam ser tão bonitas como no sonho. Era meio esquisito, eu curtia mais os momentos da despedida, da separação.
                Que estaria acontecendo? Começava a duvidar se gostava mesmo dela. Ficava com medo de sonhar, porque parecia que meu sonho me levava para longe da menina dos meus sonhos, como um traidor brigando com aquilo que no começo ele tinha dito que desejava, que era namorar a menina dos meus sonhos.
                Nesse ponto o sonho começava a se desmanchar. Eu já não sabia se gostava dela, porque ela não era mais a menina dos meus sonhos. Agora ela tinha um nome, era Maria, era Joana, era Aninha, era Roberta, ela era uma pessoa real, a pessoa real que tinha desbancado a menina dos meus sonhos, e eu tinha saudade dela.
Às vezes eu via essa mesma coisa acontecer com a menina dos meus sonhos. Ficava aflito ao sentir que ela se afastava, não estava mais tão envolvida comigo.
                Foi assim mais de uma vez, e eu comecei a pensar: “Será que o amor só é gostoso quando é novo e depois perde a graça?”. Passei também a achar que meus sonhos eram perigosos, pois eles podiam esvaziar aquilo que minha realidade permitia que eu vivesse.
                Percebi outra coisa ainda. Meu sonho se desmanchava exatamente porque eu tinha tido a sorte de realizá-lo; mas o sonho realizado não era tão bonito como o sonhado. Esse sonho aos poucos morria.
                Em outras ocasiões, as coisas se passavam de outro jeito. Quando eu me aproximava da menina dos meus sonhos para lhe falar dos sonhos que tinha sonhado, da minha paixão, ela ficava constrangida, meio assustada; sabia que aquilo não tinha nada a ver, ela estava ligada em outra pessoa.
                Aí, então, eu pensava na sensação de vergonha que teria diante daquele que era o herói dos sonhos da menina dos meus sonhos. Se ela estava ligada nele, com certeza ele era muito maior que eu, pois senão ela estaria ligada em mim e não no outro.
                Era uma tristeza quando o sonho acabava.
              Era muito mais triste, porém, quando a menina dos meus sonhos não entendia nada do que eu estava dizendo, quando ela achava engraçado, quando olhava para mim como se eu fosse um bicho estranho. Além  de não me amar, ela achava ridículos os meus sonhos. Essa era a pior situação de todas, a mais doída. Esse sonho instantaneamente morria.
                No momento em que o sonho morria, eu vivia uma profunda solidão. Eram inúteis o amor dos outros, a presença dos outros. Eu estava vazio, um buraco, sem ter como responder ao interesse, ao amor da família, dos amigos. Isso porque a menina dos meus sonhos tinha se apoderado de tudo aquilo que eu tinha de bom, de tudo aquilo que eu achava que sabia fazer com o amor das pessoas.
                Mais tarde, descobri que não são só os sonhos de amor que, ao morrerem, nos deixam sós. Toda vez que temos um sonho muito precioso, muito curtido, no qual escrevemos muitas histórias, e esse sonho morre, nós nos sentimos solitários.

                Em conversas com as pessoas, percebi que elas, frequentemente, sentiam que os sonhos atrapalhavam suas vidas. Quando contava algum sonho da minha profissão, dos filhos que eu queria ter um dia, da realização de uma família, de um grupo de amigos, elas me diziam: “Você é um bobo que fica fora da realidade; o mundo não é assim, a realidade é muito diferente”.
                Quando as pessoas falavam assim, quando achavam ridículos os meus sonhos, eles eram destruídos. Eu me sentia meio encurralado, como se precisasse concordar com elas. De fato, meus sonhos não eram a realidade; meus sonhos eram meus sonhos, eram o meu desejo e não a realidade do mundo.
                Nesses momentos, eu me encolhia todo e largava dos meus sonhos, até que um dia passei a pensar: “Por que essa pessoa tem raiva dos meus sonhos? Por que ela quer que eu pare de sonhar? Por que é tão agressiva comigo quando converso com ela e chego perto dos meus sonhos?”.
              Então me dei conta de que, muitas vezes, essas pessoas também já tinham sonhado. Algumas diziam: “Quando eu era adolescente, tive muitos sonhos, mas a vida me mostrou que a realidade é outra”.
             Compreendi que elas gostavam de mim, não queriam me ferir, mas feriam. Elas tinham ficado presas em seus sonhos mortos. Ainda estavam tão machucadas com a morte de seus sonhos que ficavam aflitas de me ver sonhando, pois achavam que eu iria sofrer.
                É verdade, podemos sofrer por causa dos sonhos, mas isso não é necessariamente ruim, embora seja triste. A morte do sonho não precisa ser uma ferida que não feche mais.
                Tive a impressão de que aquelas pessoas carregavam cadáveres de seus mortos pela vida afora. Isso as deixava rancorosas, céticas. Elas tinham raiva dos meus sonhos e de terem, elas mesmas, também sonhado.
                Elas não tinham conseguido enterrar seus sonhos mortos. Oprimidas pelos sonhos mortos, queriam que os sonhos desaparecessem. Queriam que não existisse sonho, que nem elas nem ninguém mais sonhasse, que as pessoas se tornassem realistas, práticas, pés-no-chão, e assim ficassem secas, duras. Porque são nossos sonhos que nos fazem sensíveis, que nos abrem para o cuidado dos outros, das coisas e até de nós mesmos.
             Nos sonhos que eu tinha com minha profissão havia histórias de cuidar das pessoas que sofriam, que viviam coisas que eu vivia: momentos de solidão, de frio, de escuridão, de angústia. Eu gostava de sonhar porque poderia estar perto dessas pessoas, como eu gostaria que estivesse alguém perto de mim nesses momentos.
                 Aquelas pessoas que tiveram a infelicidade de ficar prisioneiras dos sonhos mortos  tinham se tornado amargas. Numa certa época, cheguei a pensar que elas estavam com a razão, que sonhar era perigoso, machucava.

Depois descobri que, além das pessoas raivosas, havia aquelas que se esqueciam dos seus sonhos mortos. Quando lhes falava dos meus sonhos, elas ouviam, sorriam, e eu percebia uma certa nostalgia em seus sorrisos, como se elas tivessem uma pequena saudade daqueles sonhos. Diziam para eu aproveitar, curtir bastante o meu sonho, porque, aos poucos, os sonhos iriam embora. Elas não tinham raiva. Elas tinham o esquecimento dos sonhos mortos, tinham fugido deles.
Isso eu conhecia bem! Todas as vezes que um sonho meu morria, eu queria fugir dos meus sonhos, principalmente quando eles morriam no ridículo, quando eu tinha vergonha de ter sonhado. Durante anos não falei mais com ninguém sobre meus sonhos, mesmo quando eles já eram muito antigos. Queria esquecer, assim eu tinha a impressão de ficar livre deles.
         O poder esquecer os sonhos me deixou perplexo. Como era possível que algo tão importante como alguns sonhos foram para mim, pelos quais eu tinha estado disposto a morrer - pois em meus sonhos de salvar o mundo, de mudar a realidade, em alguns momentos eu era capaz de de dar a vida pelo meu sonho - pudesse ser esquecido? Se eu podia esquecer, passar adiante e simplesmente deixar meus sonhos mortos virarem nada, era porque, talvez, eles não fossem tão importantes.
Nesse tempo, fiquei muito assustado e tive dificuldade de sonhar, porque parecia que meus sonhos eram um engano. As pessoas que esquecem seus sonhos os transformam, pouco a pouco, em mentiras. Mas o sonho não é mentira. Quando estou sonhando, ele é mais verdadeiro que tudo o que está à minha volta, ele é minha verdade, porque, lá no fundo, nós somos muito mais os nossos sonhos que qualquer outra coisa.
Quando nossos sonhos desabrocham e alcançam uma grande dimensão, eles contam tudo o que temos de melhor. Eles contam de nós. Então, se os sonhos são um engano, nós também somos um engano, e a vida é toda um faz-de-conta.
Demorei a perceber que as pessoas que esqueciam seus sonhos me faziam mais mal que aquelas que tinham raiva. Precisei fazer esforço para descobrir que meus sonhos não eram mentira nem uma negação da realidade. Eles eram, ao contrário, um instrumento que eu tinha, talvez o maior instrumento que eu tinha e tenho para fazer a realidade se desdobrar, desabrochar em coisas que ela ainda não realizou. Para isso eu tinha de encontrar uma verdade nos meus sonhos mortos. Nos sonhos vivos, a verdade não está em questão. Mas como ficam meus sonhos mortos?

        Descobri um terceiro tipo de gente, além dos raivosos e dos esquecidos. Havia também os teimosos. Esses haviam sonhado, mas o sonho tinha morrido em qualquer circunstância. Eles tinham enterrado seu sonho, mas se negavam a aceitar que o sonho morto fosse coisa nenhuma, um nada, que tivesse sido em vão.
Vi que os teimosos não eram uns sonhadores fora da realidade, eles não fugiam dela escondendo-se nos seus sonhos. Eram pessoas que, na morte de um sonho, eram capazes de voltar e olhar o que estava no sonho, e lá encontravam coisas incríveis. Comecei a aprender com elas.
Aprendi a olhar para os sonhos que tinha vontade de esquecer, que tinha raiva de ter sonhado, e a perguntar: o que estava lá no sonho? Foi assim que consegui voltar a um sonho antigo, que, ao acabar, tinha me deixado esvaziado diante de uma menina que me fez sentir ridículo.
Revi aquele pequenininho, aquele bobalhão que eu tinha me sentido naquela hora, preso diante dela, tão livre, tão forte! Voltei a olhar meu sonho e lá eu vi que a força dela era a força do meu sonho. Compreendi que quando ela riu de mim, estava me contando que ela não era a personagem do meu sonho que eu pensei que fosse.
Vi que a força que meu sonho dava para a menina era um pouco daquilo que eu podia ser. O que estava no meu sonho era a minha força, a minha possibilidade, a minha energia de ser.
Meu sonho tinha morrido, mas a força que estava nele continuava, sem se mostrar, meio escondida. Foi isso que os teimosos me ensinaram: os sonhos morrem, a força deles, não; ela apenas se esconde, e podemos trazê-la de volta.

O que há por trás dos sonhos? Quando comecei a estudar Psicologia, deparei-me com essa pergunta. Algumas pessoas insinuavam que, por trás dos sonhos, havia sempre algo suspeito.
Fui olhar por trás dos meus sonhos e o que vi foi o desejo imenso de ser feliz. Todos os meus sonhos têm essa marca: o desejo de me realizar, de me sentir bem, completo. Percebi também que, nos meus sonhos, o desejo de ser feliz sempre aparece com a felicidade dos outros. Nunca tive um sonho de ser feliz sozinho. No mínimo, havia a menina dos meus sonhos sendo feliz comigo. Havia as pessoas em volta, felizes por me verem feliz, por serem objeto do meu cuidado, com a força da minha felicidade.
                Quando eu sonhava com a menina dos meus sonhos, eu andava por lugares bonitos: pelos mares, pelos campos, pelas montanhas. Andava a cavalo, de barco, de carro; vivia aventuras. E o mundo que estava lá, a praia, o mar, o barco, o cavalo, o campo, as árvores, enfim, tudo era feliz dentro do meu sonho.          
                Meu sonho, que é basicamente ser feliz, é o mesmo desejo de que as pessoas sejam felizes comigo, de que as coisas sejam plenas comigo. É isso que está atrás dos sonhos, dos meus e dos da maioria das pessoas. Não importa se é um sonho do programa de fim de semana, se é um sonho de férias, se é um grande sonho de amor, se é o sonho de uma profissão ou de um projeto de mudar o mundo.
                E quando um sonho morre? Os teimosos me ensinaram. Volte lá, olhe para o sonho, veja o que havia por trás, o que estava junto, os detalhes do sonho que morreu. Repare bem na força que havia feito o sonho nascer, que o sustentou e que agora está escondida; e mais, aproxime-se do esconderijo da força dos sonhos; e lá, onde essa força se esconde, enterre seu sonho que morreu.
Uma vez, lendo livros de Filosofia, encontrei um filósofo que, ao pensar sobre as coisas, sobre a vida, poeticamente nos oferece a imagem de como crescem as árvores no campo: em alguns momentos é como se o crescimento se concentrasse nas raízes; elas mergulham numa realidade sombria, apertada, fria, escura; a árvore se prepara para que em seguida apareçam novos galhos em sua copa. É assim que as árvores crescem, ora, aprofundando as raízes na terra escura, ora desabrochando a copa à luz do sol na direção dos céus.¹ E eu pensei que também é assim que as pessoas crescem.
Na hora em que li isso, lembrei-me daquilo que os teimosos tinham me falado: se o seu sonho morrer, enterre-o e guarde só a força do seu sonho, pois os sonhos enterrados fazem com que as raízes cresçam no escuro e lá se expandam. Dessa maneira formam uma base para que novos sonhos possam se abrir, como a copa das árvores que desabrocham na liberdade do céu, na luz e no calor do sol.
          Quando enterramos um sonho e guardamos a força do sonhar, nesse momento nos preparamos, mantemos essa força para o momento seguinte. Então os sonhos renascem, e outras histórias recomeçam. Os sonhos antigos não foram esquecidos; eles estão lá na força escondida dos nossos sonhos novos.

Um dia, na praia, numa dessas horas em que tudo está bem, tudo em ordem na vida, comecei a me sentir triste. Era uma tristeza quente, gostosa de ser sentida, que aumentou quando fui assistir ao pôr-do-sol. Vinha com ela um carinho por tudo, uma vontade de chorar. Esses momentos são muito bem-vindos: eu me sinto profundamente recolhido e, ao mesmo tempo, muito perto das coisas, do que está em volta, de qualquer florzinha que nasce na areia - de uma coisa tão árida, uma flor tão viva. Era uma nostalgia de coisa nenhuma.
Quis saber de que eu estava com saudade e o porquê daquela sensação de carinho. E aí reencontrei, nessa ocasião, os meus sonhos mortos.
Foi como se eu olhasse para a história da minha vida, não a que se realizou, mas para a história dos sonhos que eu tinha sonhado ao longo dela. Era deles que eu tinha saudade, e era por eles que eu sentia carinho - esses sonhos que tinham morrido, mas que tinham representado, no momento em que viveram, a força do meu sonhar, essa força que, de uma certa maneira, sustenta-me no meu trabalho, nas minhas relações, na minha crença no mundo, na minha vontade de buscar, no meu desejo de alcançar coisas, de realizar uma tarefa, de cuidar do que está ao meu alcance.
Eram sonhos mortos, mas que foram meus e continuam meus porque me lembro deles. Então, recordei-me da imagem da árvore com suas raízes. As grandes árvores derrubam suas flores exatamente ali, onde suas raízes se enterram, como alguém que num momento de saudade coloca flores num túmulo. Ali é o esconderijo de uma força. É essa força que agora sustenta toda a beleza da copa que se mostra. Nessa hora me senti como se fosse uma árvore, enraizada nos meus sonhos mortos, despejando sobre esses sonhos as flores dos novos sonhos, estes que agora estão vivos e que me enchem de energia, de vontade de fazer as coisas: uma homenagem dos meus sonhos vivos aos meus sonhos mortos.

Neste momento de suas vidas, com certeza, vocês estão mergulhados em seus sonhos. “Que meus sonhos se realizem”, é o que eu pensava quando me perguntavam qual era meu maior desejo. Talvez o mesmo aconteça com vocês. Por isso, quando, há um mês, fui convidado para esta conversa, senti que era disso que eu queria falar. Comecei a sonhar com o que falaria hoje, e meu sonho era poder recordar com vocês meus sonhos mortos. Desejava também que soubessem que em suas vidas, provavelmente, vocês encontrarão, ao revelarem seus sonhos para alguém, pessoas como as que eu encontrei: as raivosas, as esquecidas; mas aparecerão também as teimosas.
Em todas as situações que tenho vivido, em nenhuma ocasião pude perceber, pelo menos até hoje, que os teimosos sejam menos felizes que os raivosos ou os esquecidos. Ao contrário, tenho a sensação de que os teimosos, por mais que sofram, que quebrem a cara, que estejam a toda hora tomando rasteira da realidade, são mais felizes.
Eu gostaria que vocês se tornassem teimosos. Uma teimosia que aceita a morte dos sonhos - de certo modo isso é essencial para crescer -, mas reencontra no enterro de cada sonho a força do sonhar. Queria que estivessem dispostas a sonhar de novo, de novo e de novo, e a permitir que os sonhos novos viessem, como a seiva das árvores, buscar nesse âmbito dos sonhos mortos a energia com que os novos sonhos estão sempre prontos a nascer.
Se vocês se tornarem esse tipo de teimosos, terão maior chance de ser felizes. Se forem felizes, o mais possível, então serão honestos com o sonho de vocês, pois, afinal de contas, por trás de todo sonho há o desejo de ser feliz.
Essa teimosia, essa possibilidade de lutar pelos sonhos, que deixa que eles morram e nasçam, é um segredo, mas não deveria ser, deveria se espalhar e ser dito para todo mundo.
Isso é muito importante para que sejamos honestos para que cumpramos do melhor modo possível aquilo que em nossos sonhos se anunciou, aquilo que prometemos para nós mesmos: tentar ser feliz sabendo que essa felicidade é sempre, tal como aparece em todos os nossos sonhos, uma felicidade nossa com os outros.
Essa é a história dos desejos que sonhei contar aqui. É a história que eu trouxe de volta, que tem uma força muito grande, que é uma coisa que não deve ser segredo, embora eu sempre achasse importante que ela fosse contada como um segredo muito íntimo, como quando se fala baixinho daquelas coisas que vêm do fundo da gente para pessoas muito próximas. Nesse meu sonho do último mês - poder contar essa história para vocês -, eu tinha medo de me sentir esvaziado ao realizá-lo, de não encontrar um interlocutor com quem dividir isto, um dos meus mais preciosos segredos. Ao mesmo tempo, tinha também um grande desejo de lhes dizer essas coisas. Sinto agora que, com vocês, pude realizar esse meu sonho.

Pompeia, João Augusto. História dos Desejos. In: Na presença do sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básica / João Augusto Pompeia e Bilê Tati Sapienza - p. 31-50. 2 ed., 2 reimpr. - São Paulo: EDUC; ABD, 2014.